Bomba-relógio

20 de Agosto de 2025

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Bomba-relógio

            O fim de semana já foi, o feriado já passou, e o envelope continua no banco de trás do carro. Estou adiando o momento de abri-lo porque ali está algo que pode mudar minha vida para sempre.

            Depois de dois longos anos, voltei ao médico para uma consulta, pois a bateria estava falhando. Ele recomendou uma série de 12 exames, cujos resultados estão ao meu alcance, mas ainda os ignoro.

            Amigos e familiares me aconselham abrir o envelope e ver logo como estão as minhas taxas de glicose, triglicérides, colesterol e mais uns dos quais não sei nem o nome. Com o argumento de que essa correspondência não é para mim – e sim para o médico – sigo protelando o instante da revelação.

            Já pensou se estiver tudo descontrolado lá dentro de mim? E se minhas taxas estiverem bem mais altas do que é permitido e eu tiver que enfrentar uma dieta “braba”? Na última bateria de exames que fiz, meu colesterol já estava no limite, mas não tomei nenhuma providência.

            Um dos grandes prazeres do ser humano é comer, saborear os alimentos. A gastronomia nunca esteve tão em alta. Pessoas rodam o mundo à procura de boa culinária; e isso não é de hoje. No período das Grandes Navegações, os portugueses se lançaram ao mar com objetivo de expandir a fé cristã, mas também à busca de especiarias. Isso para melhorar os sabores e apurar o sentido do paladar.

            Passei o fim de semana e o feriado pensando como será minha vida se eu tiver que mudar minha rotina. Pela manhã, meu sagrado pão com manteiga, café com espuma de leite (pura gordura!). Na sexta, é de lei: no happy-hour, tábua de frios, com muitos queijos. Como ficar sem sorvete, pizza, feijoada, lasanha e a deliciosa comida japonesa com muito shoyo? Lanche com batata frita? E os bolos e salgadinhos de aniversário, os brigadeiros, torta de chocolate, curau, pamonha? Se eu tiver que ficar sem tudo isso, vou acabar descobrindo o que realmente significa a expressão “sem sal, sem açúcar”.

            Entro no carro e mais uma vez dou de cara com o envelope verde do laboratório, que mais se parece com uma bomba-relógio ameaçando detonar minha satisfação de comer. Ainda não marquei o retorno no médico para levar os exames. Enquanto isso não acontece, saboreio cada prato como se fosse a última vez; em alguns casos, chego a fechar os olhos. Não damos valor a esses pequenos prazeres que melhoram cada instante da nossa vida; somente quando estamos à beira de uma reviravolta nos damos conta de como temos ao nosso alcance detalhes preciosos que semeiam recordações ligadas à degustação. Pode ser durante as viagens; nas festas, com amigos especiais; nos restaurantes, em companhia de familiares queridos. Os sabores marcam nossas emoções.

            Ignorando os exames, saio de novo na esperança de que coisas não estejam tão ruins para o meu lado. Sem pensar no fato de que meus dias de abundância possam estar contados, sigo torcendo para que – num passe de mágica – dentro de mim cada componente faça as pazes com o resto do corpo.

Paro numa padaria, peço um pão com manteiga, um café com espuminha de leite e me delicio a cada mordida, a cada gole. Não faz mal que isso me engorde mais um pouquinho. Por enquanto, eu “tô podendo”!...