“Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Em meio a tantos adjetivações e momentos em que o silêncio se fez presente, caracterizando a real falta de palavras para descrever uma experiência marcante, o trecho da Música “Caminhando e Cantando”, do cantor e compositor Geraldo Vandré, foi um dos artifícios utilizados pelo odontologista de Fernandópolis Dr. Antonio Carlos Rosseto, para descrever sua participação na 32ª expedição de atendimento clínico, cirúrgico e odontológico realizada pela ONG campinense “Expedicionários da Saúde” – Cuidando da Vida, preservando a floresta-, que foi realizada entre os dias 27 de março e 4 de abril na comunidade Barreira do Baixo, no município de Tefé-AM.
Formado pela Faculdade de Odontologia de Lins (FOL) desde 1987, o dentista contou de onde partiu o convite para vivenciar o que ele classificou com a experiência mais marcante de sua vida. “Tenho uma paciente de Votuporanga e o cunhado dela se chama Francisco Mendes, que é cirurgião dentista. Ele me pediu para operar o filho dele e em seguida me explicou um pouco do trabalho da ONG que ele faz parte e acabou dando certo. Não ficou só no convite”, disse Rosseto.
Embora tivesse pesquisado um pouco sobre a história dos Expedicionários da Saúde, o dentista de Fernandópolis não tinha noção da grandeza e importância do trabalho feito a partir do Programa “Operando na Amazônia”, que atendeu a população do médio Rio Solimões e afluentes, dentre 182 aldeias cuja população é de aproximadamente 21.500 indígenas das etnias Ticuna, Kokama, Kambeba, Mayuruna, Kulina, Miranha e Kanamari. “É algo simplesmente incrível, inexplicável, que só quem participa tem noção da grandeza, organização, estrutura e amor ao próximo. Quando chegamos lá toda uma estrutura já havia sido montada, um centro cirúrgico, pós operatório, enfim, todo um complexo hospitalar, embora improvisado, com equipamentos de primeiro mundo, que poucos tem acesso. É um trabalho voluntário, porém de qualidade inquestionável. Os melhores profissionais de todas especialidades estavam lá, médicos do HC, professores da Unicamp, USP. E o conselho era de que tínhamos de atendê-los como se estivesse atendendo um parente, mas um parente que gente gosta muito”, contou o dentista aos risos.
Durante a 32ª expedição na Amazônia, foram realizadas um total de 290 cirurgias, 3.031 consultas médicas e odontológicas e 4.314 exames e procedimentos. Para tanto, todos precisaram se doar bem além do que estavam acostumados no dia a dia. “A água do banho era limitada e bem gelada, cada um tinha de levar seu prato, seu talher, só podia comer uma vez em cada refeição do dia, tivemos de levar nossas barracas, dormimos em um colchão de ar, no chão batido, em um calor muito forte e em meio a muitos pernilongos. Porém, o mais incrível é que todos superavam todas as dificuldades rindo. O espírito de voluntarismo e de pura doação e amor aos nossos irmãos era tamanho que ninguém se queixava de nada. À noite na roda de bate papo tudo girava em torno de o que fazer para atender de forma ainda melhor no dia seguinte. É um clima contagiante que não é nada fácil descrever”, afirmou.
Em meio a tantas formas de tentar descrever os nove dias mais marcantes de sua vida, o dentista Antonio Carlos Rosseto disse que os valores e resultados se inverteram. “O valor é imensurável de tão maravilhoso que foi para mim. Foi ímpar e da forma como foi feita, com a proposta de servir, dar um pouco do que temos, mas na verdade o grande beneficiado de tudo isso fui eu. Aprendi muito com a realidade de um Brasil que eu não conhecia, pessoas excluídas da sociedade, nosso irmão acima de tudo, que mostraram ter um respeito, uma receptividade imcomparável. Aprendi muito com eles, com profissionais gabaritados todos com o grande foco não apenas de fazer, mas de fazer da melhor forma possível com muito amor e carinho. Por isso eu digo que fui lá para doar um pouco de mim e na verdade eu é que sai ganhando”, frisou Rosseto.
Lições a parte, ele lembra que há muito para se fazer também em Fernandópolis, onde cada um pode se doar um pouco mais para ajudar o próximo. “Creio que essa experiência muda bastante nossa cabeça. Aumenta principalmente a tolerência e o respeito às diferenças. Convivemos com pessoas que tem posturas e jeito de pensar diferentes. Às vezes somos muito severos na hora de cobrar os outros mas temos que caprichar para fazer nossa parte e conviver melhor. Não precisa ir lá na Amazônia, aqui tem muito para se fazer. Seja lá ou aqui na periferia da cidade, cada um no seu universo somos peças importantes em uma sociedade e precisamos fazer florescer onde Deus plantou a gente”, destacou.
A ONG
A Associação Expedicionários da Saúde nasceu em 2003 pelas mãos de um grupo de médicos voluntários interessados em promover atendimento médico especializado, principalmente cirúrgico, às populações geograficamente isoladas na região amazônica, com especial atenção à população indígena.
Para operacionalizar esse modelo, a organização desenvolveu, ao longo desses sete anos de atuação, um verdadeiro hospital móvel, responsável por mais de três mil cirurgias e 18 mil atendimentos já feitos. São, ao todo, oito mil toneladas de equipamentos que viajam, a cada expedição, de Campinas, no interior de São Paulo, à Amazônia.
E assim, três tendas cirúrgicas e outras três (para pequenas intervenções e atendimentos nas especialidades de oftalmologia, ginecologia e odontologia) são montadas. O centro cirúrgico possui equipamento de última geração, forração térmica, ar-condicionado e geradores próprios. Há ainda a realização de diagnósticos especiais e encaminhamento de casos - que a equipe não esteja preparada a intervir - para centros urbanos.
Trata-se de um serviço complementar aos programas existentes de atendimento à saúde indígena e tenta evitar deslocamentos, muitas vezes custosos e traumáticos, do doente e família a centros urbanos.
A opção por priorizar o atendimento a essa população se deve ao fato de que temos hoje, no Brasil, cerca de 220 povos indígenas, o que significa cerca de 370 mil pessoas, que falam mais de 180 dialetos e se encontram isoladas geograficamente. Cerca de 60% dessa população vive na Amazônia Legal. Estão lá 608 terras indígenas oficialmente demarcadas, reconhecidas ou identificadas. Em outras palavras: cerca de 21% da Amazônia são terras indígenas, uma área equivalente a todo o território boliviano.