Um projeto iniciado pela escola Fernando Barbosa Lima e desenvolvido por uma ex-aluna muito querida no bairro, está trazendo à tona a história do Jardim Araguaia, um dos mais antigos residenciais da cidade. Em vídeos curtos e espontâneos, Neusa Vieira, a Neusinha como é carinhosamente chamada pelos amigos, está colocando os moradores para contar a história do pedaço de chão onde vivem.
Tia Margarida, Maria do Rubão, Dona Maria e seu Zé do Bode, Zé da Horta, e tantos outros que ali moram desde o loteamento da fazenda que deu origem ao bairro, foram entrevistados, por Neusa, e o resultado foi parar nas redes sociais. Como era de se esperar “bombou”, como dizem no “internetês”.
Não foi por menos. A própria Neusa nasceu, cresceu e teve seus filhos no Jardim Araguaia, portanto, vivenciou boa parte dessa história e conviveu com cada um de seus personagens.
“Eu tenho 35 anos e nasci aqui, então essas pessoas me viram crescer e todos aqui são muito amigos. O seu Zé da Horta, por exemplo, foi dos primeiros moradores aqui e a gente morava muito próximo, a gente compra leite do seu Zé da Horta há 30 anos e ele continua indo lá na casa da minha vó com a bicicletinha para levar leite, então a gente tem essa conexão com a comunidade, o que me dá ainda mais vontade de poder mostrar a história dela”, explicou Neusa.
Juntos, os vídeos já somam quase sete mil visualizações, além de dezenas de comentários, curtidas e compartilhamentos. “Que legal Neusa. Isso não tem preço. Uma guerreira que fez história e ficou para sempre gravada nos nossos corações. Te amamos tia Marga”, postou Elisângela Maira. “Pessoas humildes, batalharam muito para estar aqui. Admiro muito, admiro também pessoas como você Neuzinha, que luta de verdade pelo bairro”, completou Neuzeli Souza. “O seu Zé sempre alegre e simpático”, concluiu Márcia Vieira de Oliveira.
Os comentários partem de pessoas que viveram ou ainda vivem no bairro e acompanharam de perto o desenvolvimento de um dos locais mais carentes da cidade. Os que por um motivo ou outro estão longe, matam a saudade ao verem pessoas que fizeram parte de suas vidas e fotos antigas que algumas delas guardam como recordação.
“Cada história tem o seu charme. Seu Zé da Horta passa uma mensagem de muita honestidade, muita luta. A dona Carmem já vem com uma história de fé e nos encanta com toda aquela bondade que hoje em dia é difícil de se ver. A da dona Maria do Rubão, enfim, todas elas trazem um relato muito enriquecedor. Está sendo muito prazeroso, pois a cada novo vídeo me procuram para contar a história de uma outra pessoa que fez parte dela ou de alguém da família”, completou Neusa.
Como contam os entrevistados por Neusa, quem vê hoje o Jardim Araguaia, mesmo com seus inúmeros problemas estruturais que ainda perduram, não imagina o que passaram seus primeiros moradores.
Alguns dos relatos CIDADÃO transcreve abaixo. Os demais deixamos em aberto para que cada um tenha a oportunidade de assistir na página da Neusa Vieira no Facebook, e vislumbrar a história do Jardim Araguaia contada por quem ajudou a escreve-la.
Tia Margarida
Trabalhei a minha vida inteira, mas sempre com muito prazer e alegria, pois sou apaixonada por criança e pela área da educação. Quando vim de São Paulo e trouxe meus três filhos e meu esposo para esse bairro, que eu aprendi a trabalhar e lidar com o povo daqui e amar essa terra, que é Fernandópolis e o Jardim Araguaia.
Amo esse bairro de coração, não gosto nem que falem mal dele, porque o meu pedacinho está aqui, minha vida está nesse lugar e ficará para sempre.
Minha família foi criada aqui, meus três filhos. Todos estão trabalhando no comércio, cada um tem sua profissão, minha filha também já trabalha na área da educação e os meus netos estudando aqui.
Quando eu cheguei aqui só tinha a escola Fernando Barbosa Lima, com duas classes e dois banheiros. Depois foi construída a pré-escola, onde eu fui a primeira funcionária da prefeitura a ser contratada para trabalhar nela. Naquela época não tinha concurso, mas depois de cinco anos teve o primeiro concurso e eu me efetivei e continuei na área.
Fiquei 30 anos trabalhando, me aposentei depois disso. Senti muito minha aposentadoria, fiquei doente, quase que entrei em depressão, pois isso fazia parte da minha vida. Agora em maio fez 4 anos que eu saí da educação e o meu coração ainda está lá.
Tudo começou lá com a pré-escola, Monteiro Lobato I, com a professora Maria Aparecida Zaran Mantovani, Maria de Lurdes Gregório, depois elas se aposentaram e eu continuei com outras professoras que passaram pela rede.
Passado algum tempo, disseram que se tivesse 100 crianças eles abririam a escolinha aqui no bairro, aí eu fui atrás e consegui mais de 200, foi então que construíram a CEMEI Wilson Alves Ferraz. Lembro quando descarregaram o primeiro caminhão de tijolos ali na área da Terra das Paineiras.
Ali eu fiquei por 15 anos, onde vi e passei por muita coisa com as crianças e enfrentei com o povo desse bairro, muitas dessas coisas foram para o bem deles. Hoje olho para essas fotos e lembro das crianças. Uns já morreram, outros estão muito bem de vida, tem muitos trabalhando em áreas bonitas, são médicos professores e tem outros também que a felicidade não acompanhou eles nessa parte, mas fazem questão de passar por aqui, me abraçar, ou simplesmente gritar lá de fora “Tia Marga”.
Por isso que eu falo que quando a gente vai trabalhar, temos que trabalhar com o coração. Teve vez que que ficou sem água na escola e eu vim buscar aqui em casa. Não tinha merenda na escola e eu corria aqui em casa para fazer. O seu Newton Camargo veio muitas vezes na minha casa ver eu fazer panelas de merenda para levar para a escola, pois os ladrões tinham roubado a cozinha e não tinha nada no outro dia para dar às crianças.
Muitas vezes faltava açúcar na escola para fazer o arroz doce, que a gente servia antigamente, e eu vinha aqui em casa, repartia o pacote e levava para escola. Muitos falavam que eu era puxa-saco do prefeito, puxa-saco da escola, mas nunca foi isso eu sempre fiz porque ali tinham crianças inocentes que iriam ficar sem comer se eu não fizesse.
Trazia as crianças para tomar leite aqui em casa, chá, comer pipoca, colocava todas elas sentadinhas no meu quintal, pois minha casa só tinha três cômodos, e todas elas comiam. Nunca me fez falta, muito pelo contrário, Deus sempre aumentou o que eu tinha dentro da minha casa.
Sempre tive amor por esse bairro e sempre terei. Só irei sair daqui quando Deus me levar. Agradeço muito a Deus, pois nesses 30 anos que fiquei cuidando de criança, ensinei muito, mas aprendi também.
Passei por coisas até difíceis na vida, cheguei a amparar crianças na minha casa, que pai e mãe as vezes abandonava e eu trazia. Pais que atrasavam no serviço porque o caminhão de boia fria quebrou e eu trazia as crianças para esperar eles na minha casa, mas nunca deixei uma única criança do portão para fora da escola, sempre trazia comigo. Esse amor eu sempre tive e aprendi que a gente tem que amar o próximo.
Esse bairro hoje está maravilhoso, tem luz, tem asfalto, escola, posto de saúde, tem tudo aqui. Antigamente não tinha.
Maria do Rubão
Faz 42 anos que estou morando aqui. Na época, só existiam dez casas no Araguaia, não tinha água, não tinha luz. Assim que mudei não tinha poço, então eu andava dois quarteirões para pegar água na dona Elisa, para beber, para lavar roupa, para tudo.
Uns quatro meses depois que é que eu e um poceiro furamos o meu poço. Fiquei três dias e meio tirando os baldes de barro e de pedra até que começou a dar água, com 46 palmos.
Na época não tinha escola aqui, então a gente saia de casa as 5h30 para levar as crianças na creche, lá na Meimei e de lá eu ia trabalhar.
Esse córrego que passa aqui, só tinha um pouquinho de água, tinha dia que corria água, tinha dia que secava. A nascente era um poço que furaram lá na cabeceira, aí ele derramava e formava o córrego.
Três dos meus cinco filhos nasceram e cresceram aqui, junto com o bairro. Todos se formaram, um é professor, dois enfermeiros, o outro dentista e um agora trabalha como policial. Tenho muito orgulho deles e do bairro onde os criei.
Dona Maria e seu Zé do Bode
Quando a gente mudou para cá, aqui só tinha mato, colonhão, pouquíssimas casas, era tudo de terra, tudo casinha humilde.
Eu mesma quando cheguei aqui comprei só meio lote e construí um barraco. Foi nesse barraco que eu morei 18 anos, nesse barraco que eu criei quatro filhos.
Trabalhei muito tempo cortando cana. Na época eu lavava roupa no córrego. Fui ter energia em casa, quando meu filho caçula já tinha oito anos de vida. Na rua não tinha poste de energia, para sair de casa era uma escuridão danada.
Este ano vai fazer 39 anos que moro aqui e sempre fizeram pouca coisa aqui pelo bairro. Nesse tempo já passaram vários prefeitos, vários vereadores e muito pouco foi feito. Não tem iluminação direito, se estiver chovendo, carro não entra aqui, ônibus é muito distante.
Sonho em um dia poder ver essa rua asfaltada e iluminada.
Zé da Horta
Antes mesmo de começar o bairro eu já morava aqui. Essa área tinha muito pé de café, algodão, milho e uma única casa que era do dono da terra, o seu Wilson (Alves Ferraz). Trabalhei muito tempo aqui na roça, e quando loteou eu consegui comprar um terreno, onde comecei a fazer uma horta.
Aqui eu plantava mandioca e tudo que era de plantação eu tinha na minha horta e vendia. Por isso que pegou o nome de seu Zé da Horta. Aqui também eu engordei muito porco, criava minhas vaquinhas e tirava o leite para vender. Nunca tive preguiça de trabalhar.
Quando loteou o povo começou a vir para cá e construir uma casinha aqui, outra ali até que virou tudo isso aqui que a gente vê hoje. Mas naquela época era tudo terra, quando chovia era um lamaçal danado, quantas vezes não ajudei os outros a desatolar o carro que tinha encravado no barro.
A infraestrutura chegou aqui muito devagar, tanto é que até hoje tem ruas aqui que não tem asfalto, não tem nada. Mais aos pouquinhos foram construindo as coisas, veio a escola, mais ou menos na mesma época o postinho aí chegou o mercado do João e foi crescendo.
Hoje aqui é um bairro muito bom, tem seus problemas, muita gente fala mal, mas aqui a gente está no meio da cidade. Eu moro aqui e não troco por lugar nenhum. Só saio daqui o dia que Deus quiser me tirar.