Dia 1º de dezembro é o Dia Mundial de Luta contra a Aids. Em Fernandópolis, 330 pessoas com o vírus HIV fazem acompanhamento no Cadip – Centro de Atendimento a Doenças Infecto-parasitárias. A cidade é referência no atendimento e recebe pessoas de toda a região e até de outros estados. A Aids chegou ao Brasil há 33 anos. Na vida da Assistente Social Sandra Maria de Paiva Pereira, 49 anos, a Aids chegou há 21 anos. “O vírus HIV foi um divisor de água na minha vida”, disse nesta entrevista ao CIDADÃO, onde mostra a cara. Em 2000, em entrevista semelhante ao jornal Folha de Fernandópolis, Sandra se permitiu fotografar de costas por causa do preconceito. Hoje ela diz que, embora o preconceito seja criminalizado por lei, ele existe de forma velada. “Antes eu me escondia para morrer. Hoje me mostro para viver e pra ajudar outras pessoas com HIV a viverem”, diz. Na entrevista, Sandra diz continua na luta contra o preconceito e integra o Movimento Nacional de Mulheres Cidadãs vivendo com HIV Aids. Para os jovens, que iniciam a vida sexual cada vez mais cedo, manda um recado: usem preservativos. “A relação sexual dura uma hora e a Aids é para a vida inteira” . Veja a entrevista:
1º de dezembro é o Dia de Luta contra a Aids. Você convive com o vírus da Aids há quanto tempo?
21 anos completados no dia 19 de abril. Estou caminhando para 22 anos.
Como o vírus chegou à sua vida?
Por uma relação sexual sem preservativo com uma pessoa que eu convivia, um namorado fixo. Não foi uma transa eventual, com essa eu me cuidava. Mas, quando você passa a ter um relacionamento mais sério, é quase que automático, a pessoa tira o preservativo da vida, porque é uma relação de confiança, o que é um grande erro.
Qual o sentimento no momento em que recebeu o diagnóstico da Aids?
Foi horrível. Hoje consigo falar, acho que superei, em partes. É uma coisa que fica marcada, tanto que lembro o dia, a hora, como estava o clima, lembro tudo daquele dia. É uma coisa que fica tatuada na sua alma. Eu trabalhava na MD Construtora como copeira e faxineira. Na Santa Casa teve uma campanha de doação de sangue e o pessoal da empresa se sensibilizou e a gente foi doar sangue. Com menos de 15 dias, me ligaram falando que tinha dado uma alteração, que era para voltar ao Hemocentro para colher uma nova amostra de sangue. Mas, como eu tinha um tio que em 94 faleceu em consequência da Aids, fiquei com aquilo na cabeça. Falei pra minha irmã: acho que estou com o vírus da Aids. Eu tinha um bebê de sete meses, estava amamentando. Amamentava o meu bebê e minha sobrinha de três anos, porque eu trabalhava durante o dia e, quando chegava à tarde era a única hora que tinha para amamentar. Como tinha muito leite e minha irmã também amamentava, então a gente revezava, fazia amamentação compartilhada. Todo ano eu fazia exame. Em 94, não fiz, apesar de já ter a lei que toda gestante tem que fazer o exame de HIV, só que ainda não estava implantada. Eu tenho quase certeza que me contaminei após o parto, porque meu filho na época só teve anticorpos, que eu passei pela amamentação. Eu falo que foi um milagre ele não ter-se contaminado. Hoje já existem meios de evitar a transmissão de mãe para filho. Na minha época era: segura nas mãos de Deus e vai. Você tem fé? Vai se apegar na fé.
Como você definiria esses 21 anos com o vírus? Como conseguiu lidar com isso até hoje?
O HIV foi um divisor de águas na minha vida, é o antes e o depois. Quando me formei Assistente Social o meu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) abordou “Os Lutos da Aids”. Todo ser humano é imortal. A sensação que se tem é que vamos morrer velho. No seu dia a dia não se pensa em morte. A gente faz um monte de planos e quando você recebe um diagnóstico desse, por incrível que pareça, é aquela sensação de que acabou tudo, que a minha vida acabou. Na minha época, em 1995, não tinha remédio. A medicação foi distribuída a partir de 97, foi quando entrei com a terapia antirretroviral. O que posso dizer é que esse momento foi um divisor de águas, um parto, um construir, onde, primeiro você se esconde, olha no espelho e vê a morte, se vê dentro de um caixão. Até na hora de escovar os dentes você olha e pensa: vou morrer, vou morrer e vou morrer. Com o tempo passando, você vê que não morreu e a que vida continua. Como sempre digo, ou você se encolhe e entra na ostra esperando virar pérola, porque apodrece e não vira, ou começa abrir a ostra e vai para a luta. Levei três anos para revelar para minha família. O sofrimento de carregar isso é muito grande. Fizeram o exame na minha sobrinha e deu não reagente, Graças a Deus. A minha irmã, que morava comigo, foi embora por medo, porque era uma coisa desconhecida. Depois de 21 anos, as pessoas ainda têm medo, acham que abraçar, beijar, usar o mesmo talher, o mesmo banheiro, se pega Aids. Eu sempre digo: antes eu me escondia para morrer, hoje eu me mostro para viver e pra ajudar outras pessoas a viverem. Mas, uma coisa bem realista que precisa ficar claro: HIV mata sim, isso é cientifico. Nove pessoas por dia no Estado de São Paulo morrem em consequência da Aids. Na verdade, Aids nunca matou. É o sistema imunológico que o vírus destrói. Então é importante o tratamento e o diagnóstico não tardio. Eu não tive diagnóstico tardio. Eu nunca fiquei doente. Mas o que acontece hoje? As pessoas têm medo de fazer o exame e quando descobre já está doente.
Logo depois de se descobrir com o vírus da Aids você deu entrevista ao jornal Folha de Fernandópolis e foi fotografada de costas por causa do preconceito. Hoje você diz que tem visibilidade, mostra a cara e está falando da Aids 21 anos depois de ter contraído o vírus. Mudou essa questão do preconceito?
Falar que não mudou, estaria mentindo. Só que o preconceito hoje é velado. Como existe lei (lei 12.984/14 que entrou em vigor no dia 2 de junho de 2014 tipifica a conduta de discriminar o portador do vírus HIV e o doente de Aids em razão de sua condição de portador ou de doente, punindo tais práticas com a pena de reclusão de um a quatro anos e multa). Então as pessoas tem um pouco mais de receio. Sempre que faço palestra, faço uma dinâmica e peço às pessoas que fechem os olhos, pensem em uma pessoa com câncer terminal?. O que você sentiu? Agora pensem em uma pessoa com Aids em estágio terminal? Peço às pessoas para abrirem os olhos e revelarem o que sentiram. Sempre ocorre de a pessoa que está com câncer às pessoas dizerem: coitada. Os de Aids dizem: credo. Entendeu? Então, se fala muito, eu não tenho preconceito, mas não quero conviver, não quero visitar. Preconceito é coisa do ser humano. Mas, muito do preconceito hoje, após tanta vivência, de conviver no meio, de trabalhar com pessoas vivendo com HIV/Aids, eu concordo com uma parte da população. Muito do preconceito que a gente vive hoje também é culpa das pessoas vivendo com HIV e que se escondem, que têm medo de mostrar a cara. Então, a gente só reforça o preconceito. Quando a gente mostra a cara e diz, eu estou aqui, sou sua colega de trabalho, sua colega de faculdade, sou uma pessoa que pago meus impostos. Só que tem o outro lado, se você revela, sofre o preconceito e até você ingressar na Justiça e conseguir ganhar a causa, demanda tempo. Eu por exemplo, tive um caso de uma pessoa que foi demitida, entrou na Justiça e teve que ser readmitida. Tudo é muito moroso, por isso, é uma faca de dois gumes. Mas eu ainda acho que o preconceito só vai diminuir quando a Aids voltar para a pauta. Eu sou uma pessoa vivendo com o vírus há 21 anos. Eu luto para ser tratada como qualquer pessoa, não sou melhor que ninguém. Quero ser tratada como cidadã, de direitos e deveres. Esta semana, vendo um documentário sobre os 33 anos da Aids no Brasil e você vê que não existe político, médico, gente importante, que está com o vírus. Quem foi a última pessoa que teve visibilidade no cenário nacional com a Aids? Não sei vai concordar comigo, mas foi o Betinho (o sociólogo Herbert José de Souza). Depois do Betinho, não teve mais ninguém. Então você acha que nesse Brasilzão, não tem um monte de gente importante, formadores de opinião, que estão convivendo com o vírus? Mas, não se mostram e isso só reforça o preconceito.
Hoje as pessoas têm a sensação de que a Aids não mata mais. No Cadip em Fernandópolis, são 330 pessoas em acompanhamento e tratamento, mas o médico Márcio Gaggini alerta para os que têm o vírus e não sabem, porque não fazem o exame. As pessoas não acreditam mais no risco de pegar o vírus?
Sim. Nós fizemos um trabalho em uma empresa que trabalha com jovens e foi interessante, na hora de fazer a tabulação, duas perguntas apresentaram 100% de respostas certas: como se pega o HIV? E como se previne? Infelizmente, apesar de ter o conhecimento, o jovem não acredita que pode pegar Aids. Eles brincam, que Aids que nada, tem que ir no pelo mesmo. Eu fico imaginando, Fernandópolis uma cidade universitária que recebe gente do Brasil inteiro que vem estudar aqui, com duas universidades, com uma população flutuante que de tempos em tempos se modifica, formada de jovens, que acabam tendo medo de fazer o exame, mas não adotam o sexo seguro. Como assistente social eu vivi a experiência de fazer a entrevista pré e pós exame. Por incrível que pareça, é o mesmo discurso, 100%: estourou a camisinha. Ninguém fala que não usou, mas só falta estar escrito na testa que não usou. Ele faz o teste, quando dá negativo, respira aliviado. Daí, dois ou três meses, está lá de novo, homem ou mulher. Eu me pergunto sempre: onde estamos errando? Mas, nós estamos errando na parte da prevenção. Esse discurso use camisinha, use seringa descartável, todo mundo sabe que tem que usar. Hoje no Estado de São Paulo, as pessoas deixaram de usar preservativos nas relações sexuais. Sobram preservativos na rede pública. Está lá, peguem, usem, por favor. Tem que usar, é a única forma de prevenir, mas, infelizmente, o jovem não usa.
Qual a sua rotina como portadora do HIV?
Tudo na vida tem o lado bom. Eu gosto de olhar o lado bom da vida. Tem dias que tem uma nuvem negra em cima de mim. O bom de envelhecer é a maturidade. Eu sou combatente, militante na luta contra o preconceito. E luto muito para que as pessoas não tenham HIV. Tanto luto, que tenho meu marido que é soro discordante. Meu marido não é HIV positivo, no dia 8 de dezembro, a gente completa 10 anos de matrimônio. Meu marido faz exames de seis em seis meses. Tem que laçar porque ele não gosta. Mas, tem que fazer. As pessoas me perguntam se eu não quero saber quem me transmitiu o vírus. Eu digo, não. Que importa isso, o importante era não ter pegado. Outra coisa, a pessoa não colocou uma arma na minha cabeça, salvaguarda os casos de violência sexual. Eu me deixei expor. Então a responsabilidade é 50% para cada um. Ninguém faz sexo sozinho, ninguém está livre. O que mais ouvia, era mulher chegar e dizer: eu confiei nele. Mas, você confiou porque quis, você tem responsabilidade, não culpa. Eu convivi muitos anos com a culpa. Isso acabava comigo. Eu falava pra Deus: Senhor me dá uma chance eu vou fazer tudo diferente. Eu procurei igrejas pedindo a cura. Até que um dia nas minhas orações, Deus falou comigo: OIha pro céu, amanheceu o dia, a chance é agora, é hoje. É isso que falo para as pessoas. O ontem já foi, o amanhã a Deus pertence. Então o momento é hoje. A minha rotina é viver um dia de cada vez. Hoje estou afastada por conta da artrose. Eu ainda tomo medicação e estou indetectável há anos. Eu tomo mais de 5 mil miligramas de medicamento por dia, incluindo o antirretroviral, sou pré-diabética e tomo ainda dois medicamentos para controlar a dor do joelho que é insuportável. Também sou hipertensa. Eu tenho um CD4 de quase 1.300, ou seja, a minha defesa está muito boa, tanto que tenho indicação para cirurgia bariátrica. Eu estou indo para Rio Preto para iniciar o protocolo, porque eu peso 120 quilos. A minha batalha é diária com a balança. Ainda vem a mente das pessoas, quando se fala em Aids, aquela magreza. Foi o que mídia mostrou e ficou, caso do Cazuza, do Betinho. Eu luto contra a obesidade. Há 30 anos era impossível ver uma pessoa viver com HIV/Aids e entrar em uma fila para tentar uma cirurgia bariátrica e para colocar uma prótese no joelho. Eu tenho consciência que sou imune deprimida e que se no hospital pegar uma bactéria é complicado. Eu sofri um acidente vascular isquêmico e descobri também que sou hipertensa. O médico não diz que você tem vida, a medicina diz que você tem sobrevida. Eu me recuso a isso. Luto muito pelos meus direitos. Fiz Serviço Social (1ª turma da FEF), 100% bolsista do Prouni, por mérito. Tenho muito orgulho disso. Só Deus sabe o que passei para me formar. Não fui lá passear. Não sou uma ‘atrapalhante social’. Sou uma Assistente Social. Estou afastada do trabalho, mas atuo em outra frente. Faço parte do Movimento Nacional de Mulheres Cidadãs vivendo com HIV Aids.
O que você diria para os jovens?
Diria para todos, jovens, adultos e idosos. Todo mundo faz sexo. E os jovens estão começando cada vez mais cedo a vida sexual ativa. Usem preservativos. Uma relação sexual pode durar uma hora e a Aids é para a vida toda. É uma doença que tem como evitar. É só usar o preservativo. Aids tem que voltar a ser discutida em família. E as meninas? Muitas vezes, para se sentirem mulher, estão se expondo, não se previnem. Pelo amor de Deus, vamos acordar. Sexo é bom com segurança. Eu digo: Aids mata sim. Viver com HIV não é brincadeira. Eu sempre brinco: rapadura é doce, mas não é mole. Vamos usar preservativo e fazer teste sempre.