O juiz da 3ª Vara Cível, Dr. Renato Soares de Melo Filho, 35 anos, está usando instrumentos do novo Código Civil em ações de cobrança, principalmente no caso de pensões alimentícias. Segundo ele, o bloqueio da CNH é um dos instrumentos que o Judiciário tem para forçar o sujeito a cumprir suas obrigações e isso já está produzindo resultados positivos “com aprovação muito grande dos advogados e da comunidade jurídica. É claro que tem gente que acaba não ficando satisfeita, mas é uma minoria isolada”. O Tribunal de Justiça acaba de referendar decisão do juiz em caso de bloqueio do documento. Em entrevista ao CIDADÃO, o juiz revela também ser crítico da impunidade e cobra rigor nas penas para acabar com o “o país do faz de conta”. Dr. Renato considerou excelente a medida do STF que determina que réu condenado em segunda instância já comece a cumprir pena. Apenas lamentou que a decisão não tivesse sido unânime e considera uma vergonha um réu condenado permanecer solto por 10, 20 anos, beneficiado por infinitos recursos. Ele diz ainda que para uma mudança no País é necessária uma reforma política e redução do quadro de congressistas para melhorar a produção legislativa. Mas não tem perspectiva de mudança a curto e médio prazo. “A tendência é de que a coisa continue péssima como está”, diz. Veja a entrevista:
Uma decisão sua repercutiu ao determinar o bloqueio da CNH de pessoas em ações de cobrança, principalmente de pensão alimentícia. Como surgiu a possibilidade de adotar esse tipo de medida?
Com a vigência do Código de Processo Civil em março deste ano, o artigo 139, inciso 4º, permitiu que o juiz tivesse poderes maiores, como por exemplo, suspender o direito de dirigir do cidadão que não cumpre suas obrigações determinadas judicialmente, como é o caso de pensão alimentícia, com o incapaz, o menor, o adolescente que necessita de uma pensão. O juiz tem alguns instrumentos como ação judicial, penhora de bens e às vezes até a prisão, mas nem sempre isso é suficiente, porque a prisão para a mesma dívida ela só pode ser dada uma vez. Então, a suspensão do direito de dirigir é um instrumento adicional para forçar o indivíduo a pagar. Muitos até questionam, mas se o sujeito é motorista, depende da renda? Se ele é motorista e tem renda, tem que pagar a pensão. Então o instrumento não é voltado para eliminar a renda da pessoa. O que não pode acontecer também, em caso semelhante de outras dívidas, além da pensão, é quando o sujeito anda com carro bom, tem imóvel bom, mas tudo em nome de terceiros para fraudar uma execução, fraudar uma cobrança. Então suspender o direito de dirigir, bloquear passaporte até para quem faz viagem internacional, apesar de ser devedor, cortar o uso de cartões de crédito, são instrumentos que o Judiciário tem para forçar o sujeito a cumprir suas obrigações. Isso, na verdade, são benefícios para os cidadãos que cumprem seus deveres.
Essa medida reduz então a possibilidade da pessoa fraudar uma decisão judicial?
Exatamente. É claro que mesmo fraudando, com a prova, o Judiciário pode desconstituir essa fraude, mas é trabalhoso, há recurso, enrola. Já a coação por meio da suspensão de dirigir é mais imediata. Em poucos dias a Ciretran bloqueia a carta da pessoa, envia um AR (correspondência por Aviso de Recebimento) para esse individuo comunicando a suspensão por prazo indeterminado do direito de dirigir até que ele resolva essas obrigações ou faça acordo com a parte. E no caso nosso aqui está ocorrendo vários acordos em razão desse tipo de medida coativa e isso resolve o problema dos cidadãos. O objetivo do Judiciário é pacificar conflitos e é isso que está acontecendo com essa medida adicional.
Qual a avaliação do impacto dessa medida?
Muito positiva, com aprovação muito grande dos advogados e da comunidade jurídica. É claro que tem gente que acaba não ficando satisfeita, mas é uma minoria isolada.
No ano passado em um artigo publicado na imprensa o senhor defendia aplicação mais rigorosa da lei, até para acabar com situações como ocorrem, por exemplo, com a Lei Maria da Penha, onde muitas vezes o agressor ignora a decisão judicial de se aproximar da vítima. Essa questão de rigor ainda é um problema para a Justiça?
É um problema da Justiça. A gente vê que muitas autoridades e, isso inclui juízes, promotores, advogados, delegados de polícia, não lançam mão dos instrumentos que a lei permite. Vou dar um exemplo: às vezes passa na televisão o sujeito lutador agredindo a esposa, bateu, espancou, e as pessoas questionam porque está solto sendo que a própria lei permite a prisão preventiva em caso da violência doméstica, dada até de oficio pelo juiz, artigo 20 da Lei Maria da Penha. Graças a Deus, aqui na região de Fernandópolis os juízes criminais são muito rigorosos com isso, mas nem sempre é o que a gente vê no resto do País. Essa é uma critica forte que a gente faz.
Recentemente o STF, em votação bastante apertada, decidiu que condenados em segunda instância já devem começar a cumprir pena. Qual sua opinião?
É uma medida excelente, porque o Brasil é o país do faz de conta. O sujeito recorre infinitas vezes dentro de uma mesma instância. Por exemplo, sujeito foi condenado criminalmente pelo juiz de primeiro grau, aquele que ironicamente foi chamado de ‘juizeco’ pelo presidente do Senado (Renan Calheiros), o caso vai para segunda instância onde uma Câmara Criminal (colegiado) condena também criminalmente esse sujeito e já aí neste grau de jurisdição é possível vários recursos para travar o processo, ou seja, o mesmo julgador revê várias vezes o processo. Depois sobe para o STJ, que por seus colegiados e decisões monocráticas, decidem várias vezes o caso e sobe para o STF para ser revisto várias vezes. Isso é piada, só acontece aqui no Brasil. Na maioria dos países o sujeito é condenado em segunda instância e já responde preso ao processo se quiser continuar recorrendo. Aliás, em alguns lugares até depois da condenação em primeiro grau ele já é preso, porque se dá mais valor a decisão do juiz de primeiro grau. Então a visão do STF foi corretíssima, apesar da divisão (6 a 5), o que lamento. Em minha opinião, deveria ser por unanimidade, porque é uma vergonha passar dez anos, o sujeito ser condenado a regime fechado, pena pesada, passar 20 anos e está solto. Isso é uma vergonha.
E quando será possível mudar esse estado de coisa para que a população não tenha essa sensação de impunidade? A chegada de novos juízes o advento da Operação Lava Jato, servem como expectativa de mudança de percepção para a população em relação à impunidade?
Sim, o perfil ideológico do juiz de primeiro grau é muito diferente do juiz de segundo grau que é aquele que entrou na década de 70, década de 80, por meio de concurso, muitas vezes é um perfil mais flexível. Em relação a esses juízes novos, vai demorar 20, 30 anos para estar em Tribunal Superior. Então você vê uma espécie de vácuo, um muro, entre o primeiro e segundo graus. Então são muito comuns as decisões do primeiro grau serem muito rigorosas e no segundo grau a gente ter uma cultura um pouco mais flexível. Eu não sou otimista quanto a isso. Acredito que vai demorar duas ou três décadas para que o panorama nos Tribunais superiores mude.
Hoje o mundo vive de mudanças rápidas e a legislação não acompanha. Sempre que vai se propor uma mudança a coisa demora e quando é aprovada, já está ultrapassada. Como resolver isso?
Difícil uma solução. Primeiro tem que ter a reforma política. Voto distrital, distrital misto, um dos dois pelo menos. Diminuir o número de congressistas, isso é urgente. Tem congressista demais. E melhorando a qualidade dos nossos congressistas, o procedimento legislativo certamente vai ser melhor. Não tenho perspectiva a curto e médio prazo de que isso evolua. A tendência é de que a coisa continue péssima como está. A qualidade da produção do legislador federal é muito ruim, infelizmente.
E surgem novas modalidades de crimes e muitas vezes o juiz tem que decidir sem ter base em uma legislação específica?
É o caso da lei de crimes decorrentes de atos de terrorismo que demorou um tempão para tramitar, mesmo com Copa e Olímpiada fazendo pressão, o legislador demorou muito para que isso passasse. É um exemplo de legislação moderna, mas que precisaria até de retoques. Quem sabe o Congresso comece acordar para uma produção legislativa mais apurada.
O senhor falou do novo Código Civil. Ele atende as necessidades do momento ou já está ultrapassada e precisando de reforma?
Ele é um código que já chega ultrapassado. Ele foi feito por celebres professores, mas muitas vezes professores que não tiveram contato com o processo eletrônico, o processo digital e ele é capenga, não é adaptado da maneira ideal para o processo eletrônico, tem muitos vácuos, então ele vai precisar ser reformado, não tenha dúvida disso.
Como sempre surgem novidades, por exemplo, em questões de separações judiciais antes se discutia partilha dos bens, guarda dos filhos e agora tem também a guarda dos animais. Já lidou com esse tipo de caso?
Eu já tive discussão sobre guarda de semoventes (dos animais), mas em outras comarcas. Aqui em Fernandópolis ainda não chegou isso. Tomara que não chegue porque é muito difícil decidir esse tipo de caso, é complicado. É muito difícil avaliar caso concreto.
Em oito anos como juiz, o que surpreendeu o senhor no exercício do cargo?
Surpreendeu-me que muitas das decepções que as pessoas têm antes de ingressar no Judiciário acabam se concretizando ao longo do processo. A gente vê que nem sempre para a coisa funcionar depende de nós. Depende muito do segundo grau de jurisdição, depende muito do STJ, depende muito do STF e a gente fica aqui no primeiro grau de mãos atadas. É claro que o juiz tem muito a fazer e ele pode melhorar por si só. A gente aqui, por exemplo, na 3ª Vara Cível de Fernandópolis, reduzimos nosso acervo em praticamente à metade dos processos em pouco tempo. Por quê? Porque lançamos mão de um instrumento de divisão de trabalho e técnicas mais modernas de gestão. Então a coisa melhorou muito aqui. Claro que o juiz de primeiro grau pode sempre melhorar, mas ele depende de uma administração mais acurada nos Tribunais Superiores para que a coisa evolua e isso decepciona um pouco.
A estrutura que o Fórum disponibiliza atende o juiz ou ainda há o que melhorar?
Melhorou muito nas ultimas gestões do Tribunal de Justiça de São Paulo para o primeiro grau. Claro que tem muito a melhorar ainda. A gente teve um aumento no quadro de servidores, ampliação do quadro de bens de informática, de suprimento de rede. Tem uma limitação de pessoal, às vezes tem necessidade de convênios para que prefeituras, faculdades, consigam ai até colocar os estudantes para dar um reforço estrutural e até eles aprenderem do dia a dia forense. Mas, existe carência de pessoal.
Se fosse dado ao juiz implantar medida que tornasse a Justiça eficiente na aplicação da lei. Que medida o senhor sugeriria?
As medidas mais eficazes são do âmbito legislativo. Por exemplo, a gente tem 100 milhões de processos e boa parte desse total são execuções fiscais que são processadas no âmbito do judiciário e execuções fiscais travam de maneira excessiva o andamento da Justiça. O certo, como ocorre em outros países, essas execuções serem processadas em âmbito administrativo, ou seja, as prefeituras, o Estado e União cobrarem diretamente os tributos por meio da penhora e só depois já com o processo em andamento haveria a intervenção do juiz e dos advogados. Tirar a execução fiscal do âmbito do judiciário já melhoraria muito a atividade jurisdicional.