Hoje é o último dia da irmã Inês Facioli em Fernandópolis. A freira que chegou na cidade em 2011 para desenvolver um trabalho pioneiro (antes era feito pela Diocese de Jales) na cidade com Pastoral do Migrante, parte rumo a capital paulista para mais uma missão, dessa vez com mulheres migrantes. Irmã Inês nasceu em Itu no dia 5 de setembro de 1947 e fez seus votos perpétuos em 16 de julho de 1968. Formou-se em Letras, em São Bernardo do Campo, e em Pedagogia pela FAI – Faculdade Integrada Ipiranga-, em São Paulo e possui capacitação em migrações latino-americanas. Ela conta o início de sua carreira religiosa, experiências e dificuldades em ficar longe de sua família, por opção, para se dedicar àqueles que também estão longe dos familiares por necessidade.
Como se deu sua escolha pela vida religiosa e quantos anos tinha quando despertou esse interesse em se tornar freira?
Fiquei em Itu até os 17 anos, eu estudava à noite e trabalhava durante o dia na contabilidade de uma loja. Deixei minha casa em 1965 e me preparei durante três anos e meio para fazer os primeiros votos e ingressei na Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeu - Scalabrinianas, que atua na área da educação, saúde, ação social, mas o carisma específico é a migração. Fui fazer a parte de preparação para a vida religiosa na cidade de Jundiaí e depois que emiti os primeiros votos, a gente tem o envio missionário, e fui enviada a uma comunidade na baixada do Glicério, em São Paulo, onde trabalhava com crianças. Dava aulas em colégios da igreja católica, da nossa congregação.
Qual primeira experiência com migrantes?
Minha primeira missão com migrantes, com esse povo que deixa sua terra para outras localidades, foi em 1977, quando fui morar em Faxinal do Céu-PR, próximo à Usina de Foz do Areia – PR, onde estavam construindo a barragem da cidade. Fiquei dois anos por lá e, até então, nem existia este trabalho que fazemos com migrantes. Foi o primeiro trabalho que participei com outras duas irmãs e um sacerdote. Era trabalho voltado para família, de acolhimento e evangelização e catequização.
Encontrou renúncia por parte dos que não aceitavam o trabalho de vocês?
Sempre você encontra pessoas que tem outros interesses outras preferências, outra formação. Impossível achar que todos concordam com trabalho da igreja. Mas na década de 1970 a adesão e a presença dos católicos era de 80%.
Além deste trabalho no Paraná a senhora viajou para outros lugares, inclusive fora do país. Assim como estes migrantes, também estava longe de sua família. Nota semelhança entre o trabalho deles e o seu?
As condições são diferentes, eles migram por necessidade e por buscarem melhores condições de vida e eu saí de casa porque senti um chamado de Deus para viver em função destas pessoas que podem precisar de uma mão amiga, alguém que escute. O meu é uma opção, uma escolha, o deles é uma escolha forçada, por sobrevivência. Por que existe a migração? Porque existe essa desigualdade das regiões. Atualmente o Nordeste está em melhores condições, mas na década de 70, 80 era diferente.
A senhora conviveu com os dois lados, os migrantes no Paraná e com suas esposas e filhos por um período em Botuporã, na Bahia. Quem sofria mais a família que ficava em casa ou o trabalhador que deixava ela?
Quando saí do Paraná, fui para região de origem daqueles trabalhadores, na Bahia. Fiquei três anos e meio lá percebendo a diferença com as mulheres e filhos que ficaram e a convivência que era com eles sem as famílias. Eu acho que o sofrimento maior é para quem sai de casa. O fato de não ter o apoio da sua família, o carinho de seus filhos, a convivência com sua esposa. Então esses homens ficavam bastante carentes, o que podia deixá-los bastante agressivos, indiferentes, ou seja, interfere muito no lado emocional.
Em algum momento a senhora precisou ser psicóloga para estes migrantes aborrecidos?
Quantas vezes a gente escutou histórias com as pessoas chorando e às vezes o tempo para escuta era mínimo, mas tinham aqueles que precisavam deste momento de escuta e desabafo.
Ouvir o relato deles te emocionava? Dava saudade de sua família?
Eu estava distante, mas veja bem, eu sabia que minha família estava em condições um pouco mais favoráveis. Eu nem comparava. Eu pensava: ‘eu não tenho do que reclamar, mesmo que soubesse de algum problema de doença na minha família, porque aquela situação que estava vendo era bem próxima, tocante’.
Se as pessoas pudessem ter essa experiência que a senhora teve, a valorização a família seria maior?
Eu digo que sempre que a gente se aproxima, vai criando vínculo com quem tem dificuldade, com quem sofre, a nossa percepção e vida acaba se tornando diferente, porque você vê que tem que relativizar, não pode viver olhando só para o seu mundo, só você que sofre, só você que chora, só sua família que tem doença, que tem dívida. Então a vulnerabilidade, a fragilidade está muito presente nestas pessoas que vivem fora de seu ninho, de seu local e da sua família.
Eu rezava, pedia para que Deus cuidasse da minha família, porque eu quero cuidar de quem está perto de mim. Tenho que estar em função de quem está perto de mim. Não adianta eu ficar querendo chorar, ter saudade. Mesmo em casa você acaba se distanciando da família, e se torna mais independente, querendo viver de acordo com sua vocação, sua missão.
Jamais se arrependeu dessa escolha de estar longe de sua família para ficar perto de quem também está longe das suas?
Não. Nunca. Até me questionava se poderia fazer mais. Sempre surgem questionamentos, mas não dúvida de dizer: ‘nossa vou voltar atrás, não é isso que eu quero’. Depende como a gente encara a vida. Nossa vida é um dom, e nesse dom você tem que abrir portas, janelas, abrir os olhos para a vida, para o mundo, porque se nos fecharmos e colocarmos apenas nossa família em um quadrado, num a redoma, nosso mundo fica muito restrito.
Por conta da mecanização, o número alojamentos diminuiu. O trabalho de vocês ficou mais fácil, pelo número menor de pessoas para atender?
É relativo. Aqui na Diocese de Jales havia dois alojamentos, um em Santo Antônio do Aracanguá e outro em General Salgado. Em Fernandópolis chegam trabalhadores migrantes que não moram em alojamentos, mas as famílias estão espalhadas em diversos bairros. A migração hoje está muito dispersa. Para você visitar, acolher, oferecer uma ajuda solidária, você tem que ter um carro para verificar. Antes ficavam aglomerados e era mais fácil, eram um ou dois bairros onde todos ficavam juntos. Você sabia onde eles estavam.
Outra questão: você encontrava católicos e católicos e católicos. Hoje em dia você encontra católicos, evangélicos de diferentes igrejas, você acolhe, visita, mas não tem como fazer aquele engajamento, aquela ponte com a comunidade.
Essa pulverização religiosa atrapalhou o trabalho?
Não digo nunca que atrapalhou. Só digo que você tem que ter uma atenção personalizada, individual a cada caso, cada família. O desafio é diferente. Se ficarmos colocando muito a palavra ‘dificuldade’ você coloca barreiras, obstáculos e parece que nunca vai chegar. Se é desafio, compete a nós analisá-los e vermos de que maneira a gente enfrenta ele, sem prejudicar quem chega e sem prejudicar quem já está aqui, que já é morador.
Você também chegou a atuar fora do país. Qual a experiência internacional?
Fui para os EUA após deixar Botuporã, trabalhar com brasileiros na região de Boston, outra realidade, outro desafio, pessoas que estão buscando trabalhar fora do Brasil. Lá, o brasileiro trabalhava em tudo. Era um trabalho comunitário. Atendia até por telefone. Tinha organização das 16 comunidades católicas brasileiras como se fosse um bairro com padres, irmãs e toda assistência religiosa, para batismo catequese. Era, assim como os demais, um trabalho sócio-pastoral, um olhar social religioso e cultural.
Depois fui para o Equador, em Quito, dois anos com refugiados da Colombia que solicitavam refúgio por problemas de perseguição. Foi, dos desafios, o que mais me deixou angustiada. Era o dia todo ouvindo histórias de pessoas que eram perseguidas, que tinha perdido filhos, que a guerrilha tinha levado, que a mulher tinha ido para um lado e o marido para o outro. Lidava com conflitos emocionais. Não se consegue medir o sofrimento daquelas pessoas, por tudo aquilo que ela passou. Sabendo que tem condições e meios para superar, mas naquele momento você vê a fragilidade nua e crua. O refugiado não pode retornar ao país.
De onde tiram forças para mostrar ser mais forte e levar a evangelização?
Da nossa fé. Deus vai a nossa frente, caminha conosco e isso você vai tendo provas concretas, através das próprias pessoas, você vai vendo que aparecem saídas novas. O povo que migra não pode carregar tudo, apenas o necessário. Eles carregam a coragem, fé e esperança.
Quando chegou a Fernandópolis e qual a passagem mais marcante na cidade, que considera diferente das demais?
Vim para cá em 2011. Com relação a cidade, eu digo que o povo aqui é muito sensível, bastante solidário, bondoso, um povo de fé. Quando fiquei sabendo que Fernandópolis foi fundada por Carlos Barozzi, italiano e Joaquim Antônio Pereira, mineiro, eu percebi que a origem de Fernandópolis está vinculada a migração, de italianos trabalhar com café e dos mineiros por motivos de seca. O povo de Fernandópolis tem raízes, tanto da imigração quanto da migração.
Qual a primeira ação em Fernandópolis?
Tivemos oportunidade de acompanhar os migrantes que estavam trabalhando na ampliação da Rodovia Euclides da Cunha. Tinham 11 moradias coletivas destes trabalhadores espalhados pela cidade e na Brasitânia. Muitos precisavam de geladeira, fogão, panela, colchão, cobertor...Para muitos, aqui se ventar um pouquinho já é inverno.
Depois realizamos o trabalho com os migrantes que vieram para a construção das casas populares do São Francisco. Os demais, atualmente trabalham no frigorífico, na lavoura de laranja, comércio, restaurantes, indústria. Trabalhando com a cana-de açúcar quase não tem mais por conta da mecanização.
Qual a população migrante em Fernandópolis?
É difícil dizer. Ano passado fizemos um levantamento das famílias. Somente no Jardim Acapulco tinham 11 moradias, 42 pessoas. No Jardim Paulistano uma média de cinco famílias, 10 a 12 pessoas. No Jardim Santa Bárbara tinham três famílias de 11 a 12 pessoas, na Brasitânia outras oito famílias. São cerca de 80 pessoas que nós conhecemos. Acreditamos que temos conhecimento de 80% dos que tem na cidade.
Como será o próximo desafio?
Agora deixo Fernandópolis, vou para São Paulo para integrar um novo trabalho com mulheres migrantes. Não sei o que vou encontrar, mas não estou preocupada. Nossa preocupação não é ter sucesso, fazer carreira e brilhar. A preocupação de quem dá o seu ‘sim’ para Deus na vida religiosa é estar a serviço, disponível, aberto. Deixo Fernandópolis mas o trabalho aqui continua com as irmãs Solange, Lúcia e Dirce, que ficou no Equador por 10 anos e chegou para ocupar meu lugar.