As memórias do puro e sadio Carnaval de Rua em Fernandópolis

20 de Agosto de 2025

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As memórias do puro e sadio Carnaval de Rua em Fernandópolis

Dormir de madrugada, acordar bem cedinho, conferir os últimos detalhes, comprar o que estivesse faltando, conferir o carro alegórico e distribuir fantasias. Era assim o sábado de Carnaval do empresário Sérgio Augustini, um dos precursores da extinta e inesquecível Escola de Samba “Fermentação” e, consequentemente, do tradicional Carnaval de Rua de Fernandópolis que surgiu a partir dela.
Formado em Arquitetura e Urbanismo pela PUC – Pontifícia Universidade Católica, de Campinas, ex-secretário de Planejamento da Prefeitura, Augustini foi um dos universitários que resolveram fundar uma escola de samba em Fernandópolis na década de 1970 como alternativa de entretenimento.
Na coluna de hoje, ele resgata por meio de seu relato, às impressões do carnaval à época, o surgimento da Fermentação e o fim do Carnaval de Rua em Fernandópolis.
Quais as opções para “pular” Carnaval em sua juventude?
Existia o Carnaval popular que a Prefeitura organizava com banda, e tudo mais: o famoso Carnaval de salão e existia também o Carnaval nos clubes, que movimentava muito a cidade, na Casa de Portugal e no Tênis Clube. A molecada se reunia em bares tradicionais da cidade como o Carmino, Café Casinha, e levávamos os batuques para fazer aquele barulho.
Como surgiu o Carnaval de Rua, propriamente dito em Fernandópolis?
Nós éramos um grupo de 50 jovens, estudantes universitários que foram embora de Fernandópolis, pois naquela época, década de 70, a cidade não oferecia muita coisa do ponto de vista de cursos. Tínhamos que ir embora se quisessemos formar, ter uma carreira. Então, quando voltávamos de férias em janeiro, nos reuníamos e íamos batucar, festejar. Enfim, foi aí que fundamos uma escola de samba, que até então nem era uma escola de samba, era um grupo de amigos que se reunia nos bares para bater papo e se divertir. A princípio chamava-se Bebê Johnson que depois virou a “Fermentação”. Essa escola que, popsteriormente, começamos a investir era toda feita pelos estudantes universitários com a ajuda dos pais, mas a iniciativa era sempre dos jovens que procuravam uma opção de lazer para se divertir. Na época não tínhamos baladas, ranchos, então era uma maneira que encontramos para nos reunir. Era tudo muito simples, se não tinha uma roupa diferente, colava bolas de papel na camiseta e saía para batucar.
Vocês tinham apoio da Prefeitura para organizar os desfiles?
Até então não havia desfile, éramos apenas um grupo de jovens. Mas aí resolvemos levar a coisa à sério e organizar tudo que uma escola de samba tem: bateria, alas das baianas, carros alegóricos, etc. Como muitos pais destes estudantes universitários estavam muito ligados à política e alguns trabalhavam na Prefeitura, o Poder Público nos ajudou a promover o primeiro desfile de verdade, que foi apenas com a Fermentação, sem concorrência alguma, pois ainda não existiam outras escolas. Depois desse primeiro desfile as coisas tomaram maiores proporções com o surgimento de outras escolas de samba como a UVA – Unidos da Vila Aparecida, a Sucata, a Em Cima da Hora e a Prefeitura tinha uma comissão de Carnaval que nomeava o corpo de jurados, fazia as arquibancadas e toda a estrutura na Avenida Afonso Cáfaro, uns 300 metros, que ia da ‘munheca’ até a Praça da Liberdade, onde hoje se chama-se Fernando Jacob e ficava o palanque. Daí a coisa foi evoluindo e a Fermentação que ganhou praticamente 10 desfiles dos 13 que houve, chegou a sair para avenida com 400 pessoas. Era algo surpreendente que a juventude de hoje nem imagina.
De onde surgiu o nome Fermentação?
Primeiro era Bebê Johnson porque éramos todos ‘molecões’, muito novos ainda. Aí começamos a beber cerveja (risos). A bandeira da escola de samba tinha o símbolo de uma caneca.
Qualquer pessoa podia participar dos desfiles da Fermentação?
Bastava se inscrever e entrar no grupo. A pessoa recebia o desenho da roupa, tinha uma costureira e, como em grandes escolas de samba, a pessoa comprava sua fantasia. Nas grandes escolas eles subsidiam as fantasias da comunidade, e os demais precisam pagar. Mas nós não tínhamos dinheiro para isso. Cada um pagava a sua, nós só arrumávamos a costureira.
Quais foram os melhores enredos da Escola de Samba Fermentação? O senhor se lembra qual foi o primeiro?
Acho que o primeiro foi em relação à Amazônia, que tratava do cuidado com o meio ambiente, quando começou-se a falar sobre essa questão do verde. Depois tivemos outros enredos muito bons. Fizemos um mitológico, a Atlântida: o império submerso e outro que me lembro sobre o Brasil, país tropical, algo nesse sentido.
Era um desfile muito inferior ou diferente do Carnaval realizado nas capitais?
Lógico que a estrutura era bem menor, mas tinha tudo que um Carnaval de rua tem. Era um grande acontecimento em Fernandópolis todos os anos. Vinham ônibus e mais ônibus de cidades da região. Era uma correria da Prefeitura para acomodar todas aquelas pessoas, mais de 10 mil presentes no nosso Carnaval. Fazíamos carros enormes, que nem passavam embaixo da fiação elétrica. Tínhamos que murchar os pneus, pois esquecíamos desses detalhes na hora de montar o carro alegórico. Na véspera do desfile causava curiosidade na população em saber qual seria o enredo daquele ano, e guardávamos a sete chaves pois tinham os espiões de outras escolas. Fernandópolis foi pioneiro em carnavais de rua na região. Só quem viveu naquela época tem noção da grandeza.
Quais os nomes marcantes no Carnaval de Rua de Fernandópolis?
Tivemos aqui o Paulo Moutinho, Carlinhos Ventura (Carlinhos da Lisboa), que é um excelente sambista, fez sambas enredo que você não faz ideia. Também tinha o Gutinho Ferrari, o Luizinho Angelucci, o Márcio Carnelossi, que também fazia enredos, o Carlinhos Bastos (Batata) e o José Paulo Coelho que era um passista como ninguém, dava o sangue na avenida e virava aquilo de ponta cabeça. Quem também era nosso braço direito e esquerdo era a Lilian Del Grossi, filha do Dr. José Milton Martins e esposa do Ricardo que sempre foram grandes incentivadores.
Como era a preparação nas horas que antecediam o desfile. Lembra passo a passo como era seu dia?
Nossa! Pegava o boi no chifre mesmo. A gente acordava às 7h, tinha ido dormir às 3h da manhã, pois ficávamos arrumando os carros, que eram feitos de madeira, cano PVC, tela de passarinho, papel laminado, algodão, madeira. Era emocionante para quem fazia, muita ansiedade, expectativa. Tínhamos de guardá-los nos galpões emprestados pelas empresas, pois não tinha onde guardar. Utilizávamos o espaço da antiga Antártica, da Cafeeira Alvizzi, dentre outros. Alguns carros eram jipes camuflados, carreta de trator. No dia nós conhecíamos o projeto da escola, fazia as fantasias, mas não tínhamos a visão do conjunto. Às 15 horas começávamos a tirar os carros, correr atrás dos últimos detalhes, comprar o que estivesse faltando, ligava na casa dos amigos, pois não existia celular, se ele estivesse em casa conseguia falar, se não corria para procurá-lo e finalizar os preparativos. Aí, às 16h, nos concentrávamos na avenida e distribuíamos as fantasias. O desfile começava às 20h e depois disso ainda íamos para a Casa de Portugal fazer farra, que era um prolongamento da avenida. Às vezes até deixavam a gente batucar nosso samba com a banda.
Por que o Carnaval de rua em Fernandópolis chegou ao fim?
No ano de 1985 eu me formei. E nesse período, de 1983 a 1987 a maioria dos estudantes que compunha nosso grupo se formou e precisava trabalhar. Nossa ideia era colocar gente nova para ter um reciclagem, mas infelizmente não havia interesse. A evolução da população surgiu, as coisas mudaram, a sociedade mudou, os interesses mudaram, surgiram os ranchos, as baladas e outros meios de se divertir. Na nossa época não tinha nada então nós criamos nosso próprio jeito que veio se tornar uma escola de samba. Era um Carnaval universitário.
Hoje em dia só existe Carnaval de rua mesmo, o puro, em São Paulo e no Rio de Janeiro, ou então nos grandes blocos no Nordeste. Em Rio Preto, por exemplo, o Carnaval é quase nulo. Este ano só vai ter três blocos. Se fizer uma análise profunda de Carnaval como festa popular, acabou de vez. Carnaval agora é apenas mais uma festa. O Bloco OBA, por exemplo, em Votuporanga, pode funcionar agora como pode funcionar em qualquer outra época do ano. Este tipo de festa independe de Carnaval. Faz-se nessa época em virtude do número de dias de feriado. O objetivo da festa mudou. O interior não é mais de Carnaval.
O que mais te dá saudade, tendo em vista que nem mesmo Carnaval popular está sendo realizado em Fernandópolis?
Tenho saudade do espírito que tinha naquilo. A expectativa. Nós ensaiávamos no pátio da FIAT, a  UVA ensaiava na Praça da Aparecida, a Em Cima da Hora no pátio da Escola Solon. Era tudo muito gostoso, movimentava a cidade, as pessoas saíam do ensaio de uma escola e ia para o de outra, era um falatório, deixava todos nervosos, e na hora do desfile aquilo pegava fogo, era uma grande guerra no bom sentido. Fomos convidados até para participar do Carnaval em Rio Preto, mas a logística não favorecia. Outras escolas chegaram a buscar fantasias da Salgueiro para se ter uma ideia da disputa.
Mas por falar em saudade, a cidade era mais movimentada em termos de cultura. Tínhamos semana universitária, a AFA - Associação Fernandopolense Acadêmica, exposições, show de MPB, para os quais chegamos a trazer Toquinho, Maria Creuza, Alcione...
Como julga sua importância para o Carnaval de Rua em Fernandópolis?
Quando entrei o grupo já existia. Passei a participar no sentido de colaborar e comecei a tomar frente para profissionalizar a coisa. Fizemos um desafio de organizar como tinha que ser. Quando entrei montamos uma comissão organizadora e delegamos funções. Chegamos a ter 15 baianas, era uma coisa linda como vemos na televisão. Eu criava o enredo, desenhava os carros, pegava o tema e compunha.
Onde estão guardadas estas memórias tangíveis da inesquecível Fermentação?
Tenho fotos e troféus guardados na casa da minha mãe em Fernandópolis, e doamos todas as fantasias ao museu da cidade, se está lá eu não sei. Há alguns anos a então secretária de Cultura Iraci Pinotti organizou uma exposição com as fantasias em manequins e muitos nem acreditaram que existia aquilo em Fernandópolis.
Consegue resumir o que foi o Carnaval de Rua em Fernandópolis em uma frase?
Deixou muita saudade, era muito bom. Tenho certeza, que todos que participaram tem saudade, pois, acima de tudo era uma coisa sadia.