“A vida através da morte”: a escravidão segundo os estudos de um fernandopolense

20 de Agosto de 2025

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“A vida através da morte”: a escravidão segundo os estudos de um fernandopolense

O fernandopolense Thiago Marques Mandarino, ex-professor da FEF e atualmente docente da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, lançará em março o livro “A vida através da morte”, que trata do destino dos escravos no pós-13 de maio de 1888, data da Lei Áurea, por meio de uma análise de atestados de óbito de negros de Rio Claro, preservados pelo Arquivo Histórico Municipal daquela cidade. Além de falar sobre o livro e seus desafios, Thiago dá uma pincelada sobre suas expectativas em relação a ZPE paulista, já que sua graduação é em Ciências Econômicas e Mestrado em Economia pela UNESP. Trata também sobre os escândalos da FEF – Fundação Educacional de Fernandópolis -, onde lecionou por cinco anos e afirma que, se confirmadas as denúncias, nada mais é do que uma das faces do degringolamento pelo 
qual passou a instituição.

O senhor possui formação em economia, inclusive leciona nessa área. O que o levou a escrever sobre a escravidão?
Essa questão merece ser destacada. Com forte influência do período ditatorial, em meio ao esgotamento dos elementos civilizatórios da sociedade capitalista e ao avanço da pós modernidade, tornou-se lugar comum a fragmentação das ciências e funcionalização do ensino como mero mecanismo de formação de força de trabalho para o mercado. É preciso resgatar com urgência o real significado e o verdadeiro sentido de universidade, ciência, educação e formação. A educação e a formação devem centrar-se no homem, enquanto ser genérico, e o seu desenvolvimento em plenitude. A universidade deve ser o espaço por excelência do desenvolvimento das ciências, do saber, isto é, da apreensão da realidade. Por isso, há um equívoco muito comum ao tratar as Ciências Econômicas como um curso simplesmente destinado à qualificação pessoal para atuação na bolsa de valores ou em outras instâncias do mercado. O papel do curso de Ciências Econômicas é contribuir para a formação de pessoas capazes de desnudar a realidade, para além das aparências e em sua totalidade. É buscar compreender as contraditórias leis gerais do capitalismo e como elas se objetivam nos distintos espaços geográficos. É permitir que se vislumbre a essência dos problemas e dilemas de nosso país para, a partir daí, pensar em meios de superação dos mesmos. Pensando dessa forma, fica mais clara a relevância da história para quem se forma em “economia”. O capitalismo brasileiro reproduz-se ancorado em uma dupla articulação, extremamente perversa e cuja ruptura se faz mister: a dependência externa e a profunda segregação social, ampliada pela superexploração da força de trabalho. E as raízes desses problemas remontam, dentre outros, ao nosso passado colonial e escravocrata, aos processos de independência, abolição da escravatura e formação do mercado de força de trabalho, à constituição da República e à lógica do imperialismo. Foi atentando para isso que decidi pesquisar sobre o tema da escravidão e abolição no mestrado, que deu origem a este livro. Uma forma de contribuir e conhecer mais as raízes dos problemas que persistem na contemporaneidade nacional. É impossível assistir inerte o acirramento de algumas tendências que desdobram como fruto da dupla articulação acima referida, como um salário mínimo quatro vezes abaixo do realmente necessário para que se cumpra seu papel constitucional; a apropriação pelo 1% mais rico da população do mesmo montante de renda que os 50% mais pobres; ainda, a destinação de praticamente 50% do orçamento público para a remuneração de poucos grandes detentores de títulos da dívida pública – em maioria estrangeiros - enquanto o grosso da população brasileira padece por falta de saúde, moradia e educação. 
Quais foram os maiores desafios para a elaboração desse livro?
A minha principal preocupação no mestrado era analisar as reais e significativas transformações nas condições de vida dos negros após a abolição da escravatura, haja vista a maneira como esta se processou (lenta e gradualmente) e o recurso aos imigrantes europeus nas áreas mais prósperas do país. Para tal, fui estimulado pela minha orientadora à época, Profa. Dra Maria Lúcia Lamounier – a quem sou extremamente grato – a buscar fontes primárias para o estudo. A maior dificuldade foi encontrar algum tipo de documento, ou fonte, que se estendesse do período pré para o pós abolição demarcando a cor de pele do indivíduo. 
Como fonte documental, o senhor utilizou atestados de óbito de negros preservados pelo Arquivo Histórico Municipal de Rio Claro. De onde surgiu a ideia de analisar esses documentos para a elaboração do “A vida através da morte”?
Na busca por fontes para a elaboração do livro, tentei me ater ao Oeste Paulista como local de estudo, haja vista ser este o centro dinâmico do país no período em questão. Foi quando me deparei com o Arquivo Histórico de Rio Claro, que reúne um acervo bastante extenso e bem organizado, além de propiciar um ambiente muito bom de trabalho. E lá encontrei o que eu queria. Fiz a análise de 2.101 atestados de óbito que se estendem, ainda que de forma dispersa, de 1875 a 1930. Através destes, foi possível colher informações relevantes no pré e pós abolição acerca das condições de vida dos negros: padrão matrimonial e familiar, principais ocupações, estimativa de renda, condições de moradia e higiene e causa mortis. Realço que, em qualquer estudo, os dados não falam por si só e, desprovidos de uma análise acurada e aprofundada da realidade, dão margem a qualquer interpretação. Por isso, a primeira parte do livro dedico a uma grande revisão historiográfica, de forma a munir o leitor dos elementos essenciais para a compreensão dos dados e seu significado.
Fernandópolis sempre foi berço de bons escritores. Qual o conselho que o senhor dá aos jovens que, por falta de incentivo, de maneira geral, publicam seus textos nas redes sociais para que não fiquem no anonimato?
Há um laço mais estreito para publicação, sem custos para o autor e com boa rede distribuição, entre editoras e a academia. Por isso, para os que gostam da leitura, da produção científica e da escrita eu sugiro que mantenham uma rotina bastante regrada de estudos e pense seriamente na carreira acadêmica. Outrossim, hoje existe uma variedade de editoras com espaço para autores, como as que imprimem sob demanda o livro. 
Com a liberdade oferecida pelas redes sociais, onde todos se arriscam a escrever e plagiar, os verdadeiros escritores estão perdendo espaço ou valor?
Não diria que isso ocorre em virtude do espaço ofertado pelas redes sociais, mas como fruto do próprio sucateamento da educação em nosso país. Esse processo desestimula o estudo mais aprofundado e intensifica escritos e debates sem qualquer respaldo em conhecimento mais acurado sobre o tema ou a realidade. Vejo com pesar, senão desespero, alguns (pseudo) debates que se travam na internet, pautados quase que exclusivamente em opiniões (de)formadas sem recurso ao estudo comprometido e ao rigor teórico.
O que falta para que a classe dos escritores seja mais valorizada e não entre em extinção?
A valorização da Educação, em sentido amplo, como espaço de formação, pesquisa, produção científica e trabalho teria esse efeito.
O senhor chegou a lecionar na FEF – Fundação Educacional de Fernandópolis. O curso de Economia, até hoje, é muito elogiado já que a maioria dos formandos do setor obteve grande sucesso profissional. Qual o segredo para esse sucesso?
Bem, o curso de Economia da FEF remonta a tempo bem anterior ao período que lá lecionei. Por isso, posso me arriscar a dizer o que penso a partir do que vivenciei entre 2003 e 2008. Foi um período em que se concentrou um grupo de professores, não apenas dedicados e qualificados, mas que grosso modo tinham o entendimento do que significava um Curso de Ciências Econômicas, nos moldes que esbocei no começo da entrevista: com formação ampla, crítica, teórica e historicamente fundamentada, dedicada a desvelar a realidade, suas contradições e dilemas. Contrariamente ao senso comum, uma formação dessa natureza, mais universal e menos tecnicista, não alija, mas potencializa o graduado para atuar em qualquer esfera. Infelizmente, cursos de Ciências Econômicas dessa natureza são cada vez mais escassos. Por tal razão é que estou tão distante de Fernandópolis. Aqui em Teófilo Otoni, numa das regiões mais pobres do país, foi possível estruturar um Curso de Ciências Econômicas minimamente respaldado nos elementos que citei. No princípio houve objeções de diversas partes, na ilusória preocupação de que sem “a munição técnica” os discentes sairiam mal formados. As primeiras turmas estão se formando e é possível ver o resultado: temos discentes que saíram do curso e estão fazendo mestrado na Unicamp, Ufes, Ufrj E Uerj. Outros passaram em diversos concursos. Outros na iniciativa privada. Uma aluna do curso foi a primeira colocada em concurso do Banco do Brasil. Ano passado a Boticário abriu uma vaga para trainee e, no processo concorreram mais de 2.000 candidatos, das mais distintas partes do país. Dois formandos daqui prestaram, sendo que um deles ficou com a vaga e o outro em terceiro lugar. Por isso reforço a necessidade de se rever o papel da educação, das ciências e da Universidade. Uma boa formação, a meu ver, não é aquela direcionada a um nicho específico de mercado, mas aquela que potencializa o ser humano e o conhecimento da realidade. Isto posto, o sucesso profissional tende a vir independente da área que se escolha para atuar.
 O senhor chegou a tomar conhecimento do recente escândalo da FEF? Como ex-docente, esperava que um dia isso acontecesse?
Eu tenho acompanhado pela internet o que vem ocorrendo em relação à FEF. Sobre as fraudes que estão sendo apontadas, só posso lamentar profundamente. A FEF cumpriu um papel de extrema relevância em Fernandópolis e região, com cursos muito bons. Se confirmadas, vejo as fraudes como uma das faces de processo mais amplo e complexo, que é o total degringolamento pelo qual passou a instituição. Assisti a abertura de inúmeros cursos, muitos sem a mínima estrutura para funcionar. Vi e acompanhei colegas professores sendo demitidos por serem qualificados demais, o que custa mais caro para a instituição. Outros escondendo diplomas de mestrado e doutorado para não serem demitidos. Atrasos em pagamentos, férias, dentre outros. Acho que o caráter de “Fundação” foi deslocado e colocado em segundo plano, passando-se a primar pelo lucro na instituição. Isso feito, os cursos passam a centrar-se em gestões que primam por números, ainda que o grosso dos professores se empenhem muito para ir na contramão do processo. Não à toa, há cisão profunda entre a atividade docente e a gestão da instituição. Espero que ainda seja tempo de resgatar a FEF, com investimento na qualificação docente e ampliação da participação da comunidade acadêmica nas decisões que envolvem a instituição.
Como economista, acredita que a famigerada ZPE paulista se torne uma realidade?  O que isso representaria para a cidade?
Bem, pensando de forma mais imediata, por certo que se concretizada, a ZPE contribuiria bastante para a geração de empregos e renda no município. Contudo, é preciso refletir sobre o real significado da ZPE para o país. Essas zonas pautam-se, primeiramente, em mecanismos de atração de empresas para municípios que vivem em guerra fiscal para tal, muitas delas transnacionais e destinadas à produção para exportação. Nesse sentido, reforçam-se algumas tendências: a concentração na produção de bens com baixo valor agregado, a montagem de produtos via importação dos componentes mais intensivos em tecnologia, a transferências de valores das filiais para fora do país, a ampliação da vulnerabilidade externa de nosso Balanço de Pagamentos, o recurso à terceirização de boa parte das atividades das empresas, algumas bastante próximas à atividade fim, ampliando a rotatividade da força de trabalho e reduzindo o acesso a direitos trabalhistas. Veja bem, não estou me colocando contra a vinda da ZPE para Fernandópolis, apenas realçando os limites e contradições que a envolvem.