Pílulas contra o bullying

20 de Agosto de 2025

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Pílulas contra o bullying

 Cléo Fante é natural de Fernandópolis. Pesquisadora de renome nacional e internacional no tema bullying no ambiente escolar, sendo a pioneira no Brasil em estudos e pesquisas sobre o fenômeno. Autora do programa antibullying “Educar para a Paz” e também escritora com publicações no Brasil e Colômbia. Tem participado de inúmeras audiências públicas e incentivando legislações, políticas públicas e investimentos na prevenção do fenômeno. Parceira da Escola do Legislativo do Estado de Santa Catariana e da Secretaria de Estado de Educação de São Paulo, com duas publicações inseridas no Kit do programa “Prevenção também se Ensina”. A nossa entrevistada da semana também é parceira de instituições que desenvolvem ações antibullying, como PlanInternational, Cartoon Network, Facebook, World Vision.

   

CIDADÃO: Por que você se decidiu pela linha de pesquisa ligada ao bullying?

Cléo Fante: O primeiro contato que tive com o tema bullyingfoi na Espanha, em um curso de doutorado que iniciei em Palma de Maiorca, 2000. Decidi realizar um estudo em escolas brasileiras para comprovar se esse fenômeno também era encontrado aqui. Me surpreendi quanto aos elevados índices identificados e me comovi ante o sofrimento que muitas crianças e adolescentes eram submetidos por seus colegas, o que levava muitos a desejarem abandonar a escola e a própria vida. A partir daí desenvolvi um programa, baseado em programas europeus, especialmente do pesquisador norueguês Dan Olweus e implantei em uma escola pública municipal de São José do Rio Preto, em um projeto piloto, envolvendo 450 estudantes de 1ª. a 8ª serie. O resultado foi extremamente positivo, tanto que o programa é modelo para inúmeras escolas brasileiras e de outros países, como Portugal, Colômbia, Espanha.

 

CIDADÃO: Há alguns anos, até mesmo os professores faziam “vistas grossas” em relação às “brincadeiras maldosas” feitas pelos alunos. Por que só agora o bullying ganhou tanta visibilidade?

Cléo Fante: É preciso entender que bullying não é brincadeira, é violência. Ocorre quando um estudante é perseguido ou humilhado por seus colegas, de maneira intencional e recorrente, sem motivos evidentes, dentro de uma relação desigual de força ou poder, o que o impede de se defender, causando dor, angústia e sofrimento. Infelizmente, ainda têm alguns professores que fazem “vistas grossas”, por não compreenderem o que realmente é bullying, por falta de sensibilização, informação, formação e até mesmo por omissão. No entanto, toda essa visibilidade foi aos poucos construída, com o nosso trabalho e de tantas outras pessoas que tem se dedicado ao tema. Percorremos um grande caminho e sabemos que temos muito a percorrer. São treze anos de trabalho discutindo o tema, não somente na área educacional, mas junto aos médicos pediatras e psiquiatras, psicólogos, operadores do direito, assistentes sociais, dentre outros. Incentivamos e participamos de diversas audiências públicas, apoiando projetos de leis e investimentos no combate ao bullying. A mídia tem auxiliado nesse processo de visibilidade, abrindo espaços para a discussão e divulgação de estudos, pesquisas e ocorrência de casos, inclusive dos que resultaram em tragédias, como as que ocorreram na EE Coronel Benedito Ortiz, em Taiuva/SP e na EM Tasso da Silveira, em Realengo/RJ. Apesar da visibilidade, nos deparamos como inúmeros equívocos de interpretações e procedimentos em relação ao bullying e cyberbullying. Isso é bastante perigoso, pois tende à generalização e consequentemente, à banalização.

CIDADÃO: Como os professores, diretores e equipe escolar têm se preparado para encarar essa nova realidade?

Cléo Fante: As escolas, de modo geral, têm se esforçado muito para compreender o fenômeno e encontrar soluções. No entanto, é preciso entender que ações pontuais geram resultados pontuais. O ideal seria que o Ministério da Educação desenvolvesse programas preventivos e que as escolas pudessem adequá-los às suas realidades. Mas enquanto isso não se torna realidade, diversas secretarias municipais e estaduais de Educação esindicatos de escolas privadas tem inserido o tema em seus programas de formação profissional, o que facilita a discussão com os estudantes e as famílias. Mas isso só não basta, é preciso, sim,tratar o tema bullying,  mas também outras tantas formas de violências que ocorrem na escola, à escola e da escola. A implantação de programas de enfrentamento às violências e promoção da cultura de paz é emergencial.

CIDADÃO: Qual seria o perfil escolar adequado para que o bullying não seja praticado?

Cléo Fante: É comprovado que as escolas que possuem regras claras de convivência, participação dos pais, gestão democrática, ensino de qualidade, aprendizagens e vivenciamentos pautados em valores, estão menos propensas ao bullying.

CIDADÃO: A multidisciplinaridade seria uma boa alternativa para a implantação de práticas voltadas para a diminuição do bullying?

Cléo Fante: Apostamos no trabalho inter e multidisciplinar. No entanto, a educação precisa lançar olhar para o indivíduo em sua totalidade, holisticamente. Se a criança está bem, emocionalmente falando, consegue abrir todos os canais de aprendizagem. No entanto, o bullying compromete a saúde emocional gerando ou potencializando quadros de ansiedade, stress, depressão, etc. Por isso, é fundamental que outras áreas trabalhem em parceria com a educação, em redes.

CIDADÃO: Estamos falando de criança agredindo outra criança. Como conscientizar que essa prática tão comum nas escolas é crime? Como fica a situação, uma vez que temos um ECA?

Cléo Fante: Primeiro, é preciso entender que não existe um crime tipificado como bullying ou cyberbullying em nosso país. No entanto, a conscientização de que tais práticas podem resultar prejuízos para si, ao outro e aos responsáveis é fundamental, bem como a compreensão do ECA e do Regimento Escolar. À escola cabe aplicação de medidas pedagógicas e extrapolando os seus limites de atuação, o caso deverá ser encaminhado às autoridades competentes, sob pena de omissão. As ações praticadas por crianças, dependendo da gravidade, são passíveis de aplicação de medidas protetivas. Quando praticadas por adolescentes, o ECA prevê medidas socioeducativas, que variam de advertência e trabalho comunitário ao internamento, além de possibilidades de responsabilizar os pais pelas condutas dos filhos.

 CIDADÃO: Aliás, como é falar sobre isso com crianças que sabem tanto a respeito de impunidade?

Cléo Fante: Mesmo não sendo tipificado como crime, as crianças precisam compreender (dependendo da idade) que o bullying viola os direitos da pessoa humana. Um bom começo é a escola, através de seus profissionais, não deixar impune qualquer comportamento de desrespeito, preconceito, discriminação. O mesmo vale para os pais e/ou responsáveis.  Afinal, nós, adultos, somos modelos que as crianças se embasam e o que aprendem, por meio de nossas atitudes, utilizam em suas relações sociais. Há que se enfatizar que, apesar do senso comum, não somos o país da impunidade, basta olhar nossas prisões abarrotadas. No entanto, para uma minoria de pessoas há certa blindagem em torno de si, certamente, patrocinada por grupos com interesses comuns, o que causa indignação, perplexidade e sentimento de impunidade.

CIDADÃO: Hoje, o novo desafio é o cyberbullying. Como identificá-lo e como puni-lo?

Cléo Fante: Realmente o cyberbullying é um novo desafio, para as escolas, famílias e autoridades. É a forma de bullying mais difícil de identificação (não impossível), uma vez que o autor geralmente age no anonimato. Por isso, é preciso que os pais fiquem atentos ao comportamento dos filhos, como agem ao utilizar computadores ou celulares. Cabe à família e à escola orientar crianças e adolescentes para que não silenciem, que conte o que acontece virtualmente. Que utilizem os recursos tecnológicos com ética e responsabilidade. Que as regras de convivência sejam válidas tanto para o mundo real quanto virtual. Punir os autores, dependendo da gravidade dos atos praticados, não é competência da escola. A quase totalidade dos casos de cyberbullying ocorre fora do ambiente escolar (nas residências dos estudantes, lanhouses), embora o desfecho dos casos quase sempre ocorre no pátio da escola ou sala de aula. Assim, à escola, cabe o trabalho pedagógico, buscando sempre o envolvimento de toda a comunidade escolar - pais, estudantes, profissionais.

CIDADÃO: Qual o papel dos pais e responsáveis?

Cléo Fante: O papel dos pais e responsáveis, além da promoção de ambiente seguro e saudável para que as crianças se desenvolvam plenamente, é educar. E educação se dá com exemplos e correções de caráter.

CIDADÃO: Pelas suas viagens e participações em tantos simpósios e congressos sobre essa temática, o Brasil tem avançado em questões de políticas voltadas para a dissipação do bullying?

Cléo Fante: Temos avançado muito nos últimos cinco anos, na medida em que leis foram aprovadas em âmbitos municipais e estaduais. No entanto, a maioria ainda é “letras mortas”, pois não saíram do papel. Aprovaram as leis, mas falta o seu cumprimento, especialmente em capacitação profissional, atendimento às vítimas e autores, diagnose, etc. Ainda tem o Projeto de Lei Federal que estamos lutando para aprová-lo, com alterações na Lei de Diretrizes e Bases e no Estatuto da Criança e do Adolescente, além de políticas públicas e investimentos em prevenção.

CIDADÃO: Voltando à temática para uma esfera municipal, nós temos uma Vara da Infância e Juventude muito atuante em Fernandópolis. Você acredita que essa interferência seja positiva? Cléo Fante:A atuação da Vara da Infância e Juventude de Fernandópolis, tendo à frente o Juiz Evandro Pelarin, é de extrema importância no combate ao bullying. O trabalho intersetorial, a parceria com as escolas na orientação dos profissionais e das famílias são fundamentais para assegurar o direito de crianças e adolescentes, para protegê-los deriscos de envolvimento em delinquência, drogas, abandono escolar, muitas vezes frutos do envolvimento em bullying.