Caridade também está no sangue

20 de Agosto de 2025

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Caridade também está no sangue
 Médica nas áreas de hematologia e hemoterapia Brigida Cristina do Amaral Botelho Prudêncio é responsavel pelo Núcleo do Hemocentro de Fernandópolis. Ela e sua equipe trabalham incansávelmente para angariar doadores de sangue para suprir as necessidades de Fernandópolis e região além de realizar o cadastro de medula óssea. Para a coluna, a médica fala dos desafios diários, das dificuldades em se conquistar o doador e qual a importância do gesto para a sociedade. 
CIDADÃO: Qual a atual situação do Hemocentro de Fernandópolis? O estoque de bolsas de sangue está muito baixo?

Dra. Brígida: A situação é sempre precária porque sempre tem muita gente precisando de muito sangue. Nós temos que fazer uma reposição diária e isso não para. São 365 dias no ano, 24 horas por dia, tudo funcionando, então sempre estamos precisando de sangue.

CIDADÃO: Quais são os casos que mais precisam aqui em Fernandópolis?

Dra. Brígida: Não têm os casos que mais precisam, mas as urgências são as que nos pegam com dificuldade. Às vezes tem um acidente, um atropelamento e aí você precisa de uma porção de bolsas rapidamente. Dentro da medicina, os transplantes são os que mais ocupam, mas nós não temos isso aqui. Todavia, nós temos hemorragias e uma série de procedimentos e patologias que acontecem e que nós temos de estar prontos para acudir. Isso não marca hora, não fala assim: “tal dia eu precisarei de tal sangue”. Isso acontece apenas nas transfusões de ambulatório, mas também é uma coisa muito restrita, pois, às vezes, o paciente chega ao ambulatório precisando de três ou quatro bolsas. Isso não tem data marcada e devemos estar preparados para qualquer eventualidade que ocorra.

CIDADÃO: Qual o tipo sanguíneo que mais precisa?

Dra. Brígida: Não é o que mais precisa. Na população, os grupos sanguíneos mais frequentes são os O+ e A+. Por que é que sempre faltam os negativos? Como a frequência desses grupos é menor na população, então nós temos um menor estoque e, quando precisa, ninguém vai avisar que precisa de meia bolsa. Nós tivemos na semana passada dois pacientes, um da cidade e outro de fora, e os dois eram negativos. Foram sete bolsas em questão de horas. Isso é difícil e complicado.

CIDADÃO: Tem todo um procedimento para quem vai ao hemocentro doar sangue, passando por um crivo. Por que isso é feito?

Dra. Brígida: Às vezes, o questionário é um pouco invasivo em sua vida pessoal, mas não há outra maneira de fazermos isso. Embora os exames sejam de absoluta confiança, existe ainda o que chamamos de janela imunológica, que é o tempo em que a pessoa está contaminada e o exame continua dando negativo. Para que a gente minimize essa janela, é que fazemos o questionário. Muitas das coisas são bloqueadas nesse momento. Muitas das perguntas que são feitas são no sentido de proteção do doador e eles não percebem isso. Nós temos responsabilidade com o doador também. Nós temos muitas pessoas que vêm e dizem que vão fazer uma cirurgia dentro de poucos dias, por exemplo, então nós não permitimos que ela doe. Nós não sabemos o que vem pela frente para a vida pessoal deste doador. Depois que operar e se recuperar, pode voltar. Nós temos muitas perguntas nesse sentido e a pessoa, por falta de conhecimento, não entende, afinal é uma coisa muito específica.

CIDADÃO: Quais são os casos em que não se pode doar sangue em hipótese alguma?

Dra. Brígida: Pacientes diabéticos, pacientes que sofrem de convulsão, que tiveram hepatite depois dos doze anos de idade, que tiveram algum tipo de câncer - nesse caso há algumas exceções como quem teve câncer de pele, por exemplo. Pacientes que sofreram cirurgia cardíaca não poderão doar em definitivo, algumas patologias cardíacas também não podem doar, assim como os bariátricos. Tudo isso é no sentido de proteção do doador e eles não enxergam isso. Eles precisam entender que também precisamos protegê-los.

CIDADÃO: Quais são trabalhos realizados no Hemocentro além da coleta de sangue?

Dra. Brígida: Tem o cadastro da medula óssea. É um trabalho que realizamos para encaminhar ao Inca (Instituto Nacional do Câncer) que fica no Rio de Janeiro, que é onde fica o arquivo do “Redome”. Então, nós colhemos o sangue para a transfusão e colhemos o cadastro para medula óssea.

CIDADÃO: Quem quiser fazer apenas o cadastro também pode?

Dra. Brígida: Sim. De preferência, pedimos para que façam as duas coisas juntas (risos).

CIDADÃO: Já teve muita gente de Fernandópolis convocada pelo cadastro?

Dra. Brígida: De vez em quando eles chamam. Nós entramos em contato, colhemos uma nova amostra de sangue, manda de novo e, a partir daí, o contato é direto com o provável doador. Vale lembrar que o cadastro não obriga doação. Se no meio do caminho ele desistir, ele não vai doar. Não é porque ele é cadastrado que é obrigado a doar.

CIDADÃO: Qual a maior dificuldade em conseguir um doador?

Dra. Brígida: A maior dificuldade é a compatibilidade entre o receptor e o doador. Nós somos um país altamente miscigenado estando longe da raça pura. Tem índio, tem negro, tem italiano, tem espanhol, tem português. Nós não somos um país originalmente, tendo uma mistura de raças muito grande. Isso é uma dificuldade porque quanto mais se mistura, mais complicado fica a mistura do gene.

CIDADÃO: Na hora de doar sangue, do que as pessoas mais reclamam? Por que as pessoas sentem tanta dificuldade para vir doar?

Dra. Brígida: Primeiro porque eu acho que vivemos uma vida muito corrida. Todo mundo trabalha muito; todo mundo tem muito pouco tempo. Segundo, que eu acho que não é cultural. Vamos dizer assim: qual a cultura da cidade de Fernandópolis? É no mês de maio ir para a Exposição. Nós não temos essa cultura da doação. Ter que dizer que em duas ou três vezes no ano temos que doar sangue não faz parte da nossa cultura. E não é só em Fernandópolis, eu acho que é no país inteiro. Está aí a dificuldade. Às vezes abordamos uma pessoa e ela fala “já faz tudo isso de tempo?” e já tem cinco ou seis anos que ela não vem ao hemocentro e ela acha que foi ontem. Isso é comum de acontecer, pois perdemos a noção de tempo, vivemos tudo muito acelerado.

CIDADÃO: Quais são os meses de maior déficit de sangue?

Dra. Brígida: Véspera de feriados, então, natal e ano novo é um horror. O pessoal vai para as festas, bebe e não vem doar sangue. É uma época em que temos dificuldade, até mesmo porque eles bebem, trombam, batem e nós temos de estar preparados. O mês de julho, teoricamente, é de baixa, mas, agora que tem a campanha do Corpo de Bombeiros, a “Bombeiro Sangue Bom”, acaba estimulando a doação e nós conseguimos atravessar esse período.

CIDADÃO: As famílias dos pacientes que precisam de sangue também ajudam no incentivo. Essa ajuda funciona bem?

Dra. Brígida: Funciona, mas tem outra coisa. Se tiver um jovem que sofreu um acidente, causa uma comoção social e enche de doadores. No momento em que ele para, para o doador. As pessoas não entendem que não é só aquele paciente, que existem maispacientes. Tem gente que não tem família para ser acionada; tem gente a família mora longe e dificulta. Isso não tem fronteira e precisamos estar preparados para acudir todo mundo.

CIDADÃO: Se não tem um tipo sanguíneo aqui, onde vocês buscam?

Dra. Brígida: O Hemocentro de Ribeirão Preto tem vários núcleos. Assim como tem em Fernandópolis, tem em Araçatuba, Presidente Prudente e Franca. Portanto, buscamos em outros lugares, assim como eles também mandam buscar aqui. E muitas vezes acontece de não ter onde buscar porque todos estão sem.

CIDADÃO: Semana passada, no caso do Dr. Orlando Rosa, foi feita uma campanha para que viessem doar. Teve bastante gente aderindo?

Dra. Brígida: Teve. Orlando é uma pessoa muito querida, então veio bastante gente. Mas, nós utilizamos sangue de pacientes que já estavam agendados, porque se não, não teríamos como atendê-lo.

CIDADÃO: Muitas pessoas recorrem aos amigos, redes sociais e a imprensa para angariar doadores. O que falta as pessoas entenderem?

Dra. Brígida: São formas importantes de divulgação para que as pessoas se conscientizem. Eu costumo dizer que caridade não é feita só com o bolso. As vezes, uma doação de sangue é tão importante, ou mais, do que você comprar alguma coisa para dar para alguém. É importante que as pessoas se sensibilizem e que elas tenham isso como uma regra. A mulher não vai ao cabelereiro uma vez por mês para pintar o cabelo ou uma vez por semana para fazer as unhas? A doação de sangue também precisa entrar no calendário delas e que elas venham a cada três ou quatro meses. Os homens organizam durante o ano inteiro uma pescaria, ou um final de tarde com os amigos para tomarem uma cervejinha e baterem um papo. Que eles, antes disso, passem por aqui e doem sangue. Não é uma coisa que eles vão fazer todos os dias e todo fim de semana. Se eles fizerem três ou quatro vezes ao ano já é o suficiente.