A emoção de pisar o velho palco

20 de Agosto de 2025

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A emoção de pisar o velho palco

Na última terça-feira, o ator André Araújo realizou um sonho: voltar a subir no palco do Teatro Municipal de Fernandópolis, sua terra natal. Nesse mesmo teatro, está a gênese artística do rapaz, além, é claro, do aspecto genético: ele é filho de Elaine Araújo Silva e de Zecão, o versátil violeiro/cantador/poeta/compositor da cidade. André, formado pela Escola de Comunicações e Artes da USP e com anos de experiência no CPT de Antunes Filho, atua no musical “Lamartine Babo”, há três anos em cartaz, e que em 2010 ganhou o Prêmio Shell na categoria Música. Por uma dessas coincidências da vida, chegamos juntos ao teatro, e foi possível observar a emoção do ator ao adentrar o velho ninho. Assim, a entrevista só poderia mesmo acontecer no palco: sentamos numa mesinha do cenário e André, com os olhos brilhando, falou da vida, da carreira, da cultura nacional e do eterno retorno que marca a vida de todos nós (VicRenesto).

 

CIDADÃO: Quando você se tornou ator profissional?

ANDRÉ: Comecei a trabalhar no teatro profissional ainda dentro da universidade, acho que em 2005. São sete anos. Saí de Fernandópolis já há dez anos. Na ECA, comecei a desenvolver no curso de direção alguns trabalhos autorais. A primeira peça foi Preguiça Vaidosa, que era uma grande bobagem muito divertida. Enquanto isso, fora da universidade, trabalhei num espetáculo chamado Evergreen, num espaço chamado Casa das Caldeiras, que fica em frente ao seu saudoso Palmeiras (risos). Ali ao lado tem uma antiga fábrica dos Matarazzo, aquela das chaminés. Montamos uma casa lá e ficamos uns três anos desenvolvendo projetos. Montamos as peças Incubadora, Ubumákina, e depois da faculdade, entrei no CPT (Centro de Pesquisa Teatral) coordenado pelo Antunes Filho, onde tive oportunidade de fazer Senhora dos Afogados, Policarpo Quaresma, Vapt-Vupt e o Lamartine Babo, que trouxemos a Fernandópolis.

CIDADÃO: Certamente você já conhecia a fama da “fera”. Como é trabalhar com o Antunes?

ANDRÉ: Muita gente considera o Antunes um carrasco – e o rótulo até que não é totalmente indevido (risos). Só que é um grande mestre. No trabalho com ele, percebi que atualmente está se perdendo uma característica nas relações humanas que vem desde a Grécia Antiga: o mais velho ensina ao mais novo. O Antunes consegue segurar essa relação de uma forma muito bonita e exigente. Às vezes a maneira de agir dele pode parecer meio cruel, mas é um homem que tem uma utopia muito forte e uma responsabilidade de formação artística e criativa que é muito bonita.

CIDADÃO: O Antunes sempre foi intransigente, no sentido de não prostituir sua arte, não é?

ANDRÉ: Sem dúvida! O Antunes é uma das últimas cidadelas da arte séria, que não é comercial. Ele tem imensa responsabilidade com a cultura brasileira. Daí porque as montagens dos clássicos - tragédias gregas, Shakespeare - sempre se intercalam com propostas do universo brasileiro – Jorge Andrade, Lima Barreto, que escreveu Policarpo, Mário de Andrade – Macunaíma é a grande montagem de Antunes. Dessa responsabilidade com a nossa cultura, ele não abre mão.

CIDADÃO: Como está o cenário teatral de São Paulo, hoje? O momento é bom?

ANDRÉ: Acho que para a arte em geral, o momento é bom. Num momento em que o Brasil é visto como referência mundial, São Paulo vira um grande espelho. Cria-se uma polifonia muito rica, mas não se pode falar em alguma corrente estética predominante, ou que haja uma tendência. Na verdade, a grande tendência é a pluralidade. Claro que nesse mosaico pode surgir um teatro sem o rigor técnico que seria ideal, a “responsabilidade artística”, como diria o próprio Antunes. Porém, mesmo existindo algumas “barbáries artísticas” pela cidade, o fato é que nunca se fez tanto, numa se formaram tantas pessoas, do ponto de vista do acesso à cultura. Acho que isso não tem preço. Há um grande número de peças bem acabadas, bem trabalhadas, e principalmente a possibilidade de fazer e assistir teatro. Hoje, trabalho num equipamento da Prefeitura, chamado Centro Educacional Unificado (CEU), onde o pessoal das comunidades periféricas, que até então tinha muito menos acesso à cultura, hoje lota teatros, debate o espetáculo no final, e a gente vislumbra que é um momento de fomento muito importante, e há a exigência qualitativa. Dentro desse cenário, que é muito diverso, no que tange à performance, instalação, teatro, a dança, acho que o CPT ainda é um compromisso com o “bem-feito”, a responsabilidade artística.

CIDADÃO: Há 50 anos, grupos como o Arena, Opinião, CPC, tinham propostas de levar a cultura às periferias do Rio e São Paulo – “o artista tem de ir onde o povo está”. Isso voltou a acontecer no país?

ANDRÉ: A gente tem que entender que aquele momento desse teatro mais engajado, como o do Arena, tinha um contexto peculiar, devido ao momento político que o país vivia. Se a opressão ideológica daquele momento era muito mais evidente, a contracultura também era. É aquela história: o branco, em relação ao preto, é muito mais branco. Hoje, vivemos numa suposta democracia, num grau maior ou menor – dentro da cultura de massas, até que ponto isso é verdade, a gente não sabe – mas há uma expansão, sim, do universo cultural, até pelo momento político que o país viveu recentemente, com a ascensão de classes sociais – e aí falo de um momento particularmente bonito da história, quando se conseguiu engrenar e abrir novos limites – acho até que ninguém esperava o avanço social registrado. Naquele momento, o paradigma político era muito mais bem estabelecido. Hoje, com as ideologias mais diluídas –como diz o filósofo polonês ZygmuntBauman, “vivemos a era da modernidade líquida”, onde a própria cultura se adequa às necessidades de um nicho, de uma tribo -, então, de certa maneira, fica mais fácil maquiar as estatísticas.

CIDADÃO: Mas se você observar a filmografia brasileira atual, constatará que a estética do cinema fala dobrasileiro, do homem do povo. O cinema está subindo o morro, entrando na periferia, interagindo sem folclorismos com os índios do Xingu. O teatro atual está se preocupando verdadeiramente com o homem comum?

ANDRÉ: O nosso diretor, Emerson Danesi, gosta de repetir uma frase do Antunes: “O homem está com saudades do homem”. Faz muito sentido. Existe um programa na cidade de São Paulo chamado Programa Vocacional, que possibilita aos jovens de comunidades longínquas um processo de formação autoral. Orientadores vão lá para dialogar com o artista local e criar processos de emancipação com grupos que tenham autonomia de produção, de forma que o próprio protagonista dessa área consiga encontrar maneiras de exteriorizar seu trabalho, seu próprio discurso. Em geral, quando o teatro traz esse fardo, essa responsabilidade de dobra cultural com a periferia, na maioria das vezes resulta num discurso um pouco piegas. O cinema nacional tem subido o morro? Pode ser que sim, mas o cinema nacional é muito burguês. É o “rico subindo o morro”, com um olhar de piedade, talvez até filantrópico.

CIDADÃO: Fale de “Lamartine”.

ANDRÉ: Este espetáculo é uma delícia de fazer. Trata-se de um período maravilhoso da música brasileira, de Chico Alves, de Orlando Silva, Noel Rosa. E Lamartine Babo, por ser o rei do Carnaval, traduz uma alegria da formação cultural do início e meados do século XX, que é algo que nós acreditamos tenha se perdido na nossa cultura. Se você liga o rádio hoje em dia, escuta muita música de péssima qualidade. O pop nunca foi tão ruim, o rock nunca foi tão ruim. Nossa herança cultural, que vem lá dos lundus, do samba, e vai evoluindo, passando por Tom, Vinicius, João Gilberto, a Tropicália, em algum momento esse elo da maravilha da música brasileira se perde. Então, o espetáculo tem esse mérito: o resgate, a valorização da cultura musical brasileira, que significa alegria, os carnavais dos tempos hedônicos. Quem trabalha no espetáculo entra no clima, brinca, faz folia. É muito gostoso fazer “Lamartine”. A gente costuma dizer que a peça nos dá saudade de um tempo que não vivemos. Além do mais, ele é muito tocante. Já completamos três anos em cartaz, viajamos pelo interior e por outros países. Ficar três anos em cartaz, no Brasil, é muito raro. Considero esta montagem uma pérola delicada do nosso cenário teatral. Talvez aquela frase do Antunes, “O homem está sentindo saudades do homem” tenha aí sua explicação: a falta do simples, do prosaico, daquilo que é tocante como uma gota de chuva que cai e escorre pelo vidro da nossa janela.

CIDADÃO: Qual é a sensação de voltar ao palco do Teatro Municipal MerciolViscardi, que afinal representa o embrião, o útero materno da sua formação artística? Dentro de três horas, você estará em cena...

ANDRÉ: Confesso que estou tremendo como vara verde. É muito emocionante. Quando entrei aqui, há instantes, o coração palpitou. Este teatro é fruto de uma luta que considero familiar, porque nela estiveram meu pai, minha mãe, os amigos todos, você, a Iraci. Foi muita batalha para que este teatro virasse realidade. Estive na inauguração deste teatro, quando ele abriu as portas sem as poltronas. Estar aqui é o mesmo que voltar pra casa, é uterino, como você falou. Pisar neste palco profissionalmente, depois de tê-lo pisado no amador, no infantil – e acho que a grande formação do ator é mesmo no teatro amador, o infantil, que dão traquejo de cena – enfim, o cheiro deste teatro, as cores, a madeira deste palco, e ainda com o nome do Merciol, que foi muito importante na cultura desta cidade, uma figura ideologicamente pura, um grande sonhador. Cada tijolo deste teatro é um sonho de alguém que brigou pela cultura e arte de Fernandópolis.