Professor fala do projeto “Cantadores e Contadores de História”

20 de Agosto de 2025

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Professor fala do projeto “Cantadores e Contadores de História”
Terminou na última quarta-feira, 14, o projeto “Cantadores e Contadores de História”, realizado na EE “Professor AntonioTanuri” e idealizado pelo professor de História Getúlio de Souza Lima, que há seis anos vive em Fernandópolis e trabalha naquela escola. A proposta de Getúlio – a materialização de um conjunto de elementos das tradições regionais de origem caipira – foi encampada entusiasticamente pelos alunos da 9ª série da escola, o que transformou o evento num sucesso incontestável. Aos 46 anos, esse professor nascido em Dirce Reis, uma pequena cidade na região de Jales, casado com Rosimeire, pai de Rafaela, formado há 23 anos pela Faculdade de Ciências e Letras de Jales e atualmente mestrando em Educação Escolar pela Unesp de Araraquara é desses “operários da educação”, que, anonimamente, lutam pela recuperaçãodo ensino público no país. E, caipira que é com orgulho,Getúlio sonha ver os costumes e tradições do paulista do interior preservados na plenitude, malgrado os ditames da invasão cultural e da deturpação de hábitos que vem a galope na mídia eletrônica. Um projeto que a sociedade precisa ver, participar e até ajudar a ampliar.

CIDADÃO: O que o levou a ter interesse pelo curso de História?

GETÚLIO: Desde que comecei o curso fundamental, e também no ensino médio, sentia que meu foco era na área de ciências humanas, principalmente em História. Então, a partir da minha própria base, direcionei o alvo para aquilo que entendia ser a minha vocação, ou seja, o curso de História. Se você quer ser um professor e pesquisador, precisa ter vocação para uma determinada área do conhecimento. No meu caso, a História me fascinava, principalmente pela diversidade de abrangência e porque a História define uma sociedade.

CIDADÃO: Você pertence a uma geração que ouviu uma “história oficial” de “pé quebrado”, contada pelo poder, não é? Bem, dizem que toda história, pelo menos no Brasil, é mal contada (risos). Como você vê esse conflito entre a história oficial e aquilo que realmente aconteceu?

GETÚLIO: Está aí o que faz da investigação histórica uma coisa fascinante. Com o decorrer do tempo, provavelmente o que aconteceu no Brasil, por exemplo, nos “Anos de Chumbo” que você citou, seja mais e mais revelado. Isso inspira a pesquisa, até porque na minha formação, aprendi que a “história oficial” repercutia apenas de um lado, e que você tem que buscar outras situações para poder enxergar um pouco além, ampliar o horizonte histórico. É a forma de melhor compreender o seu próprio tempo. Acredito que hoje, com todos os anos que tenho de experiência atuando como professor, e agora na área de pesquisador, é algo que abre um vasto campo para estudar e trabalhar – as contradições da história oficial e a busca de uma história onde os dois lados tenham o direito de se contrapor e argumentar.

CIDADÃO: O que é esse projeto “Cantadores e Contadores de História”? Quais são seus objetivos?

GETÚLIO: Como a minha própria tradição diz – já que nasci na região – e por estudar História, eu tinha em mente propor um trabalho no qual os alunos se sentissem inseridos nas suas próprias raízes que, ao longo dos anos, foram se desvirtuando. A ideia de “Cantadores e Contadores de História” é utilizar a memória das raízes e tradições de pessoas que vivenciaram e que ainda fazem repercutir na sociedade esses hábitos e manifestações como algo presente na História. Acreditei sempre que isso poderia ser explorado dentro do ambiente escolar mesmo não sendo um conteúdo oficial, mas essa inserção do aluno no meio em que vive, e que muitas vezes o afasta de sua gênese. Esse projeto representa uma expressão humana. A ideia era trazer para o ambiente escolar aquilo que cada aluno tem nas suas origens – a cultura-raíz, que é o conjunto dos elementos que formam as tradições caipiras. É o caso da música, da culinária, dos hábitos de conversar em rodas, das festas, da religiosidade e sua diversidade. A região de Fernandópolis tem várias manifestações típicas, destacando-se, por exemplo, a Folia de Reis. São vários elementos que se complementam formando a cultura caipira. Iniciamos o projeto este ano, e o resultado está sendo muito bom.

CIDADÃO: Em sua opinião, qual é a importância do “causo” – enfim, da tradição oral - numa sociedade que vive hoje sob o signo da multimídia, da informação eletrônica?

GETÚLIO: Essa questão talvez seja um pontochave da situação. Numa sociedade midiátia como a que vivemos atualmente, essas referências vão se perdendo, e para você colocar isso num ambiente de ensino, até pela própria dificuldade de chegar no “causo” em si devido à questão imagética, é uma proposta de fazer uma contraposição entre esse modo de ser e de agir da sociedade moderna e aquilo que se estabelece dentro do causo. Sentimos que uma coisa vai se perdendo nessa seara: o contato. Porém, sentimos que através das próprias manifestações que os alunos se propuseram a desenvolver, a presença humana ainda se faz muito importante dentro do aspecto tecnológico. Hoje, você pode utilizar esse fator dentro de uma tradição caipira. Os alunos trouxeram para o nosso ambiente de estudo equipamentos da mídia.

CIDADÃO: Particularmente, você escutou de gente da sua família os chamados “causos ao pé do fogo”?

GETÚLIO: Claro, eu fui criado em Dirce Reis! (risos). Nós vivenciamos tudo isso da forma plena. Certas ocasiões, especialmente nos finais de ano, velhos conhecidos chegavam e contavam histórias, algumas às vezes difíceis de acreditar, mas a verdade é que sempre teve aquilo de se “apimentar” um pouco uma situação, era típico, mas o fato é que um “causo” pode se tornar um “causo” para a realidade atual, porque em outras situações e ambientes, aquilo seria perfeitamente possível. Hoje, prevalece como sendo o “causo” uma das referências para você estabelecer uma ligação humana entre uma pessoa menos vivida e aqueles que conhecem e que têm a sabedoria. Quando se fala de “cultura”, é bom que se diga que até um analfabeto pode ser culto. Existem diferenças entre cultura e civilização, a cultura nasce e existe dentro da sociedade. O ensino traz a erudição, mas o erudito, muitas vezes, não tem o conhecimento cultural que possui uma pessoa que aprendeu muito com a vida em sociedade.

CIDADÃO: O projeto foi desenvolvido com alunos de quais séries?

GETÚLIO: Nós trabalhamos com alunos do 9º ano, são jovens na faixa de 14, 15 anos. Nossa surpresa foi grande e muito positiva, porque a repercussão da proposta e a motivação demonstrada pelos estudantes foram excelentes, acima da nossa expectativa. O envolvimento foi total. Quando escrevi o projeto, ponderei que é comum que alguns estudantes, tanto do ensino médio quanto do fundamental, sejam meio arredios a esse rótulo de “caipira”, mas é porque não entendem o conceito em si. Na realidade, o caipira é o paulista do interior, responsável pela formação das tradições caipiras. Foi o caipira que expandiu as fronteiras do estado de São Paulo, inclusive para esta região, que era há 80 anos sertão bruto, e que contribuiu com a miscigenação com negros, índios e imigrantes europeus. Tudo aquilo que não é capital paulista nem litoral paulista é o “interior”, a terra do caipira. A nossa região noroeste paulista é uma das que mais preservaram essa característica, e isso até mereceria um estudo mais apurado. O “sertão de Rio Preto”... Os alunos conseguiram chegar não só à constatação das transformações regionais que ocorreram, mas também de que essas transformações não apagaram o que existia. A pauta, a nossa proposta, teve uma resposta excelente, os alunos interagiram muito bem, principalmente quanto à intelecção da diversidade cultural.

CIDADÃO: Então, o balanço do que foi o “Cantadores e Contadores de História” é positivo?

GETÚLIO: Sim, pelo que foi produzido e principalmente pelo envolvimento deles como protagonistasda nossa proposta – ou seja, buscar aquilo que, apesar de fazer parte do seu histórico, eles não tinham como referência; e hoje, eles têm a noção da importância da preservação – no sentido de evitar que a nova realidade midiática deteriore esses elementos da cultura de raiz. Por que não, mesmo dentro desse segmento moderno, valorizar aquilo que faz parte de suas raízes?