David: “O fato de não enxergar não me impede de voar”

20 de Agosto de 2025

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David: “O fato de não enxergar não me impede de voar”

David Farias da Costa tem 44 anos e é assistente da Secretaria Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Esta semana, ele esteve em Fernandópolis para supervisionar o andamento de um convênio entre a Secretaria e a Associação dos Deficientes Visuais de Fernandópolis. Detalhe: David é cego desde o nascimento. Isso não impede que ele trabalhe, tenha família, viaje e produza como qualquer trabalhador. Baiano e católico, só me esqueci de perguntar qual é seu clube do coração (ele leva jeito de corintiano; se não for, me desculpe, David). Em 1998, ele foi candidato a deputado estadual pelo PSDB, e do seu slogan tirei o título da entrevista. Ela constava do logo de campanha do David, simbolizado por um tucano de bengala e óculos escuros. Conversar com ele foi uma experiência de vida muito rica, que divido com prazer com os leitores (VicRenesto).

 

CIDADÃO: Esta é a terceira vez que você visita Fernandópolis. Quais foram as razões dessas visitas?

DAVID: Como eu trabalho na Secretaria Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência, fui indicado como gestor de um convênio da Secretaria com a associação dos deficientes visuais de Fernandópolis. Dentre as minhas atribuições de orientador do projeto, tenho que vir periodicamente à cidade, e aproveito para conhecer a realidade local da pessoa com deficiência.

CIDADÃO: E o que você constatou aqui, de bom ou de ruim?

DAVID: Eu diria que, hoje, temos um cenário bastante positivo, porque muitos avanços aconteceram. Por exemplo: a própria existência da associação local dos deficientes visuais, que faz importante trabalho de reabilitação e integração. Há o Centro Lucy Montoro, que tem um belo projeto vinculado à área da reabilitação há boas perspectivas por aqui. Por outro lado, há o trabalho importantíssimo das escolas em torno da inclusão. O Saturnino (Leon Arroyo) atende crianças do ensino fundamental e médio, e o Ivonete (da Silva Rosa) faz a parte da inclusão do ensino fundamental I. São avanços, mas há dificuldade geral de conscientização para esse problema. É necessário que a sociedade se conscientize da importância de reconhecer e apoiar esse trabalho. O deficiente tem o direito de se integrar à sociedade, é um apelo que fazemos. Não se tem que ter pena das pessoas, e sim dar-lhes apoio.

CIDADÃO: A EE Saturnino Leon Arroyo, por exemplo, está bem adaptada, a ponto de poder ser considerada uma escola inclusiva?

DAVID: Na verdade, temos que analisar a inclusão sob o ponto de vista estrutural, físico – a preocupação que o (diretor) Cabral tem em buscar os recursos; e existe a questão da inclusão do ponto de vista do conceito. Pelo pouco que pude perceber, os alunos com deficiência estão entrosados com os colegas. Tivemos a experiência do Jovem Parlamentar, tudo isso reforça. Há inúmeros desafios e problemas de recursos, mas com certeza é um caminho promissor.

CIDADÃO: Como se chama aquele piso especial para deficientes visuais?

DAVID: Piso tátil. É um piso com relevo, que diferencia e indica os principais caminhos num determinado ambiente. É recente no Brasil. Ainda estamos nos habituando. Só que, infelizmente, por falta de informação, algumas pessoas colocam obstáculos nesse piso tátil. Na Avenida Paulista, em São Paulo, que já é dotada dessa inovação, tem gente que coloca caçambas sobre o piso! Tão importante quanto oferecer elevador em braile, banheiro adaptado, etc, é conscientizar as pessoas da necessidade de auxiliar os deficientes no dia a dia. É a acessibilidade humanizada.Vou dar um exemplo: no Metrô de São Paulo, há sempre um integrante do “Jovem Cidadão” que guia o deficiente.

CIDADÃO: Vamos falar um pouco de você: de onde é, como ficou cego...

DAVID: Nasci na cidade de Caiteté, na Bahia. Fica a 12 horas de viagem de Salvador, é bem no sertão. Meus pais logo perceberam que eu tinha deficiência visual, porque com 1 ano de idade eu rejeitava a claridade. Era o nono filho do casal, e minha mãe decidiu me deixar com minha avó. Morei na roça até os 8 anos. Meus pais tiveram 16 filhos no total. Aí, meus pais providenciaram minha mudança para São Paulo, em busca de tratamento. Tentamos de tudo, passei em diversos especialistas, até que um médico disse que não havia possibilidades clínicas de reverter a doença. E eu precisava estudar. Esse médico indicou o Instituto Padre Chico. Minha mãe retornou à Bahia e eu fiquei com meus tios, que assumiram a responsabilidade de me criar. Começou ali uma etapa fantástica da minha vida. Foi quando eu entrei na escola. A partir dali, em contato com quase 300 deficientes visuais, comecei a formatar um projeto de vida, aprendi a jogar futebol, a conviver com muitas pessoas. Mais tarde fui morar numa pensão e estudava na rede pública. Dependia das outras pessoas para me ditar a matéria, por exemplo. Teve até um fato curioso: um dia eu estava escrevendo na reglete, que é um sistema de escrita braile, na qual você vai furando da direita para a esquerda, para que você possa virar a folha e ler na posição correta. Isso fazia um barulhinho: tectec tec. Aí, um amigo meu, gozador, falou para a professora: “Pô, o David parece um pica-pau!” (risos). Fiz depois o curso técnico de administração, em São Caetano do Sul. Mais tarde, decidi estudar Pedagogia. Nesse tempo, eu trabalhava com vendas, ia de ônibus para todo lado. No Instituto Padre Chico, havia uma fábrica de vassouras. Eu vendia para empresas de ônibus, empresas limpadoras, etc. Eu vendia em Guarulhos, Arujá, aonde fosse. Andava o dia inteiro, e à noite ia para a escola. Mais tarde trabalhei numa distribuidora da Gessy Lever e, quando estava no último ano da faculdade, comecei a lecionar na rede pública. Nesse tempo comecei a militar no movimento institucional. Fundamos uma instituição chamadaCESEC – Centro de Emancipação Social e Esportiva de Cegos. O carro-chefe era o esporte. Sempre joguei futebol, e estive em três paraolimpíadas, em Sidney, Atenas e Pequim. Talvez, se eu enxergasse, não teria oportunidade de viajar ao exterior! (risos). Tive a oportunidade de conhecer o Canadá, a França, a Espanha. Eu me considero uma pessoa agraciada e por isso entendo que seja meu dever contribuir para que outros tenham as oportunidades que tive. É preciso acabar com a segregação do deficiente.

CIDADÃO: Você é casado?

DAVID: Sou casado com a Fátima, que é deficiente visual total. Temos um casal de filhos: Tiago, de 10, e Gisele, de 9 anos. Eles enxergam normalmente. Minha esposa trabalha num banco, e com recursos da informática ela consegue dar atendimento aos clientes. Como trabalhamos fora, temos uma pessoa, a minha irmã, que auxilia na administração da casa. Um dia, o Tiago me disse: “Papai, se um dia você viesse a enxergar, eu estranharia, porque aprendi a gostar de vocês assim como são”.

CIDADÃO: Há uns 14 anos, você foi candidato a deputado estadual pelo PSDB. Se tivesse sido eleito, qual seria o seu projeto parlamentar?

DAVID: Aquela foi uma experiência muito bacana. O logo da minha campanha era um tucano de óculos escuros e bengala (risos) e a frase era: “O fato de não enxergar não o impede de voar”. Nossa plataforma política era, sobretudo, fazer cumprir a legislação, e fazer um trabalho através do qual pudéssemos informar a sociedade sobre a questão do deficiente. Há muita lei a respeito do assunto, mas que não são cumpridas. Infelizmente, o próprio deficiente muitas vezes aceita a condição de que ele é “coitado”. Isso é imposto a ele, de forma explícita ou sub-reptícia. Quando alguém adquire uma deficiência por acidente, as visitas ficam naquela coisa de “coitado, como vai ser agora?”. Deveriam é pensar na reabilitação, no que fazer para ajudá-lo a se reabilitar! 

CIDADÃO: Como é mesmo aquela história do assalto?

DAVID: Na verdade, já fui assaltado três vezes em São Paulo. Num deles, o bandido me falou: “Eu sei que você é paraplégico, mas é de dinheiro que eu preciso” (risos). Espero que o bandido, pelo menos, assim como entendeu que dinheiro de cego é igual ao dos outros, entenda que os deficientes são pessoas como as outras.

CIDADÃO: Bem-humorado, já vi que você é. Você se considera uma pessoa feliz?

DAVID: Muito feliz! Apesar de todos os desafios da vida, eu, um católico de formação, sou grato a Deus em todos os instantes. Ele me dá força para superar os desafios e as dificuldades. A vida é uma gangorra. Hoje, vivo um momento especial, fazendo um trabalho que considero importante na Secretaria, que me permite aprender a cada dia.