Claro que haveria exagero em chamá-lo de Zumbi dos Palmares do século 21. Mas Evandro Luís Inácio tem a mesma obstinação do célebre rei do quilombo mais conhecido da história do Brasil: integrante do Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, Evandro enfrenta a burocracia e a má vontade política das elites dirigentes com destemor e sem fazer concessões. Agora, ele luta contra a atual administração especialmente em duas frentes: pela efetiva implantação do ensino da cultura afro-brasileira nas escolas da rede pública e pela melhoria dos serviços de saúde relativamente à prevenção das moléstias que são típicas da raça negra. Aos 45 anos, formado em Administração de Empresas, Evandro é filho de Maria Aparecida Santos Inácio e de Lourival Inácio de José, além de neto de um personagem ligado à história de Fernandópolis: o falecido oficial de Justiça Antônio dos Santos, o Tonicão.
CIDADÃO: Como começou essa cizânia entre o Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra e a administração da cidade?
EVANDRO: Essa celeuma iniciou-se em fevereiro. Eu oficiei à secretaria da Educação pedindo informações sobre o cumprimento das leis federais números 10.639/03 e 11.645/08.
CIDADÃO: O que estava acontecendo?
EVANDRO: Em novembro de 2011, demos um curso de capacitação para os professores da rede municipal de ensino. Havia 40 vagas, e só participaram oito ou nove, isso porque a turma foi reforçada por alguns alunos de História da FEF. Na abertura do curso, trouxemos uma pessoa que é verdadeira autoridade no assunto. Pois bem: nem a secretária da educação, nem o prefeito compareceram. O prefeito pelo menos mandou uma representante, a Neiva. Bem, a verdade é que os professores da rede pública, de maneira geral, quase nada sabem sobre a cultura afro. Muitos nem sequer sabem o que é um quilombo, pensam que até hoje seja aquela situação de Palmares, e que o pessoal anda descalço. Trouxemos alguns documentários do Quilombo de Cafundó, em Salto do Pirapora. Alguns professores ficaram maravilhados, não tinham a menor ideia do que era aquilo.
CIDADÃO: Como, por força dessas duas leis, a história das culturas afro e indígena deve ser ministrada nas escolas, não seria o caso de haver maior interesse de participação, por parte dos professores?
EVANDRO: Esse mesmo curso foi ministrado na Secretaria Estadual de Ensino. Está em conformidade com a Lei de Diretrizes Básicas. Também há um parecer oficial pela realização desses cursos. O MEC segue isso. A capoeira, por exemplo, foi regulamentada e sua introdução no currículo escolar é obrigatória. Fernandópolis já tem esse projeto; só que temos 25 escolas na rede municipal de ensino, realizou-se um concurso público no município do qual ninguém soube e apenas cinco pessoas o prestaram. Ou seja, três são capacitados, são professores na área da educação da capoeira, os outros dois são alunos. Então, para atender 25 escolas, há apenas três pessoas. Além disso, de acordo com a lei que criou essa obrigatoriedade, a capoeira envolve uma série de aspectos da cultura afro-brasileira. A capoeira é dança, é língua, é canto. No concurso não teve isso. Por quê? Pelo desconhecimento da cultura afro. Não têm a capacitação necessária.
CIDADÃO: Os aprovados, então, têm capacidade de jogar a capoeira, mas não de discorrer sobre a sua origem, etc, é isso?
EVANDRO: Um dos professores faz parte do Conselho Municipal da Comunidade Negra. Questionei isso numa reunião. Nós havíamos feito um projeto para o ensino de capoeira, está aqui (mostra a cópia). Ensinar capoeira não é só jogar, não é isso que a lei exige. A criança tem que aprender de onde vem a capoeira, seus cantos, o toque do atabaque, os significados desses toques.
CIDADÃO: Qual é a posição do prefeito em relação às suas reivindicações?
EVANDRO: A situação é até engraçada. Fui conversar com ele a respeito de um material didático, estribado na essência da Lei 10.639. O município não possui material didático referente à cultura afro. A secretária da Educação respondeu a um ofício que lhe enviei informando que o município está em conformidade com essas exigências. Porém, fui a duas escolas para conferir na biblioteca se existia mesmo esse material. Não há esse material didático, só há dois livros. Aí, uma professora sugeriu a compra de dois livros: “Luana, a menina que viu o Brasil crescer” e “Luana e o Berimbau Mágico”. São livros paradidáticos. A professora achou interessante e sugeriu a compra. Eu imaginava que fossem comprar para a rede, para as 25 escolas. Não: há um pedido de empenho da secretária para comprar 24 livros, somente. O município tem 204 professores na rede fundamental de ensino, e 2913 alunos. É impossível aplicar algum trabalho pedagógico com apenas 24 livros! Conversei com a secretária de Educação e ela disse que iria comprar os 24 livros porque o município “já estava fazendo muito” na questão da Lei 10.639, e que havia município onde não se fazia nada nesse sentido. Infelizmente, os professores não sabem o que é quilombo e só se preocupam com duas datas: 13 de maio e 20 de novembro. Quando chegam essas datas, chovem convites para dar palestras. Ora, não são apenas essas datas que interessam, são várias, como 21 de abril, que é o Dia Mundial da Discriminação Racial; 7 de Julho, Dia Nacional de Combate ao Racismo; 4 de novembro, Dia Mundial do Samba. Eles não sabem dessas questões étnicas. Falei à secretária que gostaria de debater com os professores o que em essência a proposta dessa legislação. Na verdade, me coloquei à disposição do município. Só que não tive retorno.
CIDADÃO: Faltou vontade política ao município?
EVANDRO: Sim, até porque nem e preciso sair de Fernandópolis para trazer os cursos, há uma empresa na cidade que traz os professores para ministrar os cursos, professores da Ufscar, de São Paulo. Fico preocupado com os estudantes. E se cai – como costumam cair – questões sobre o tema no Enem, no Saresp? Como é que o menino vai responder a prova, se não tem qualquer base? Não será a história oficial – “A princesa Izabel libertou todos os negros e tal...” que vai instrumentalizar o estudante.
CIDADÃO: E a área da saúde? Qual é a grande preocupação atual do Conselho?
EVANDRO: A preocupação não é só aqui, é em todos os municípios. Não se faz políticas públicas relacionadas à questão da saúde da população negra. O SUS tem uma portaria de 2009 que trouxe alguns benefícios à comunidade negra. Mas veja: nós temos aqui em Fernandópolis 19,9% de habitantes negros, segundo o IBGE. Consegui algumas outras informações: a saúde tem a informação de que no município há 49 crianças com o traça falciforme, ou seja, a anemia falciforme. Quando um branco e uma negra, ou uma branca e um negro se casam, o filho pode ter o traço, porque o negro tem grande propensão à anemia falciforme. É genético. A criança pode não desenvolver, mas tem o traço. Num casal de negros, há 99,9% de chances de a criança ter a anemia falciforme. Estive em São Paulo na APROF, que é a Associação Pró-Falcêmicos. Trouxemos uma palestrante a Fernandópolis, a Sheila, que acabou falando apenas para quatro pessoas. O município pagou as despesas da vinda da palestrante, mas só foram quatro pessoas da Saúde! E, dessas quatro, duas saíram no meio e foram à lanchonete tomar cerveja. É um descaso tremendo. De 2008 a 2012, tivemos 385 partos de mulheres negras e pardas no município. Em nenhum dos casos foi feito o exame para diagnosticar se a criança tinha o traço falciforme ou se tinha a anemia.
CIDADÃO: Quais são os sintomas dessa doença?
EVANDRO: É bem complicado. Uma pessoa com essa anemia pode ter perda de baço, rim, os ossos atrofiam, ela sente dores terríveis. Em certos casos, só a morfina resolve. Isso, claro, num estágio avançado da doença. Os sintomas começam a aparecer a partir dos cinco anos de idade. A questão é a prevenção, e é tão simples fazer. O teste do pezinho serve para fazer esse diagnóstico, o exame específico é a eletroforese de hemoglobina. Ele está disponível no SUS e é gratuito. Só que Fernandópolis não tem um laboratório especializado. Mas existe em Rio Preto, em Ribeirão Preto, cidade cujo hemocentro mantém convênio com o nosso hemonúcleo.
CIDADÃO: Os índices do IBGE apontam índices aparentemente conflitantes. Dos 64.696 habitantes de Fernandópolis registrados no último censo, só constam 1749 negros, e uma população de pardos de 12.542. Fernandópolis não tem só 1749 negros, não acha?
EVANDRO: Tem muito mais. O que acontece é que os cartórios de registro civil, baseados num provimento da corregedoria, não colocam mais a cor do indivíduo no assento de nascimento. Isso gera um sério problema, porque há muitos casos de declaração equivocada – hoje, você é quem declara sua cor. Certos benefícios, como a dotação de cotas em escolas ou concursos, ficam prejudicadas por informações estatísticas incorretas. O Estatuto da Igualdade Racial mostra quais são os direitos, os benefícios, e foi uma luta para aprová-lo. Infelizmente, ele é desconhecido pelos próprios negros.