A bailarina Bete Garcia vê o mundo da amurada de um navio

20 de Agosto de 2025

Compartilhe -

A bailarina Bete Garcia vê o mundo da amurada de um navio

 Anos atrás, minha filha Vanessa dançava na Corpus Academia. Eu assistia a todos os festivais de final de ano e ficava impressionado com o talento de uma moça morena, alta e esguia, cuja dança parecia saltar da alma. Na última quarta-feira, revi a menina no Plaza Eventos: Elisabete de Souza Garcia, hoje integrante do corpo de baile da Cia. Marítima Pullmantur, da Espanha, estava em Fernandópolis visitando o pai, Dario Garcia, e o acompanhando à solenidade de lançamento do livro sobre Fernandópolis, onde a falecida mãe de Bete, Albertina Rosa de Souza Garcia, é biografada. Marcamos a entrevista para o dia seguinte, e Bete me contou de suas aventuras pelo mundo – há quase quatro anos, ela dança em navios de luxo, que fazem cruzeiros pelos oceanos do planeta. Elogia o apoio do pai, “fundamental” para sua carreira: “Ele me surpreendeu, perguntou se era a dança que me fazia feliz. Respondi que sim e ele me deixou voar”. (Vic Renesto)    

CIDADÃO: A arte sempre esteve presente na sua vida?

BETE: Sempre. Desde muito pequena. Meu pai brinca, dizendo que eu dançava até ao som da máquina de lavar roupas. Sempre gostei de dançar – tanto é que o castigo que eu sofria, quando fazia alguma peraltice, era a proibição de dançar.

CIDADÃO: Era uma coisa instintiva?

BETE: Eu me lembro que uma vez, uma professora disse à minha mãe que eu vivia dançando na escola. Terminava as atividades rapidamente para dançar, eu me dispersava por causa da dança. Bem, minha mãe me colocou no Conservatório, a Lucimeire Dutra naquele tempo dava aulas lá. Eu era bem pequena, tive que entrar no balé, porque não havia turma de jazz para a minha idade. Eu tinha uns cinco anos. Um dia, minha mãe não pôde ir me buscar no final da aula, eu tive que ficar assistindo a aula de jazz. Ah, pra quê? Como você sabe, o balé é mais “paradinho”. Depois de ver a aula de jazz, eu não queria mais voltar pro balé. Com o tempo, a dona da academia viu minha facilidade para dançar e me disse: “Olha, se você quiser mesmo seguir carreira, tem que fazer o balé, porque ele é a base para todas as danças. Ele é que dá a técnica, a disciplina. Não é o meu estilo favorito de dança, mas fiz por causa desse aspecto.

CIDADÃO: Qual é o conceito atual de “moderno”, na dança?

BETE: Hoje, a dança passa por muitas modificações. Antigamente, se conhecia mais o jazz, o balé, o contemporâneo, o sapateado. Atualmente, acontecem muitas fusões, que produzem outros tipos de dança. O que eu mais gosto, neste momento, é o flamenco, que nem é uma dança brasileira – é espanhola. Na verdade, sempre quis fazer o flamenco, mas em Fernandópolis não havia. Também há o lyrical jazz, que usa muito do contemporâneo, do moderno, com a base do clássico para poder executar esse tipo de modalidade.

CIDADÃO: No período em que você estava na Corpus Academia, você se destacava não só pela técnica, mas também pelo apego à academia – era a primeira a chegar e a última a sair. É caso de paixão, mesmo?

BETE: Ah, sim. Costumo dizer que na minha época, havia uma turma que era total e apaixonadamente dedicada à dança – a Luciane Mioto, a Vanessa Maldonado, a Karina Maldonado. A gente tinha a dança em primeiro lugar mesmo, deixávamos de viajar com a família para ficar ensaiando nos finais de semana. Vestíamos a camisa da academia! A apresentação no festival do final de ano, então, era o nosso happening, esperávamos aquele momento o ano inteiro. Era igual às escolas de samba, que se preparam durante meses para o carnaval. Ficávamos exaustas, mas adorávamos aquilo. Acabamos criando uma relação com a Lucimeire que era de família. Foram muitos anos juntas.

CIDADÃO: Quando a dança resvala na temática social, você acha que o público brasileiro entende bem?

BETE: Acho que isso está começando a mudar agora. Antes, não. Graças a Deus, as fusões da dança com outras artes têm permitido essa intelecção. A vinda dos grandes musicais para o Brasil está dando um valor maior aos bailarinos, porque dentro do musical o corpo de baile é essencial. Por outro lado, exige-se mais do bailarino, porque para você entrar num projeto desses, você também tem que saber interpretar, cantar. Isso também nos obriga a exigir mais de nós mesmos. Além da preocupação com a técnica, acabamos por nos exigir outras coisas, outras aberturas. No Brasil, há raros profissionais com formação acadêmica concomitante de dança, canto e interpretação. A Cláudia Raia é uma dessas artistas – e não por acaso, ela foi protagonista de tantos musicais. Nesse aspecto, os EUA estão anos-luz à nossa frente.

CIDADÃO: Ainda no seu período de Fernandópolis, você também participou do Grupo Zeca Poesia & Seresta. Como foi que isso aconteceu?

BETE: Para falar a verdade, não lembro exatamente como entrei para o Zeca. Eu tinha afinidade com a família do Zecão e da Elaine, assim como os meus pais também tinham. A Carol (NT: a jornalista Ana Carolina) era uma daquelas meninas apaixonadas pela dança que contei. Uma vez, eles estavam precisando de uma cantora e, não sei como, souberam que eu gostava de cantar. Fui fazer um teste e eles gostaram. Para mim foi ótimo, pude me desenvolver no canto. Isso ajuda inclusive na dança. Tenho muita saudade daquele tempo, ficamos muito amigos. Aprendi a gostar de alguns estilos musicais que não conhecia e também a prestar mais atenção a estilos aos quais eu não dava muita atenção. Melhorei muito o meu gosto musical, a partir da convivência com a Elaine e o Zecão. Além disso, foi super divertido, porque nós tínhamos que nos desdobrar, às vezes tínhamos que ir a três ou quatro lugares no mesmo dia. Geralmente as serenatas eram surpresa – mas a maior surpresa mesmo foi para mim, num aniversário. O Zecão me avisou que poderia ficar tranqüila, em casa, que naquele dia não teríamos compromisso. De repente, eles apareceram, cantando pra mim. Eu tinha vontade de receber uma serenata, mas não imaginava.

CIDADÃO: Aí, um belo dia, você embarcou rumo ao grand monde, para tentar a carreira profissional. Como as coisas aconteceram a partir daí?

BETE: Estava numa fase em que não tinha mais como evoluir aqui em Fernandópolis. Tive, então, a sorte de conhecer o Zeca, que é hoje o coreógrafo residente da Lucimeire, ele tinha começado a trabalhar com a gente em 1996. Ele trabalhava no Hopi Hari, e foi exatamente através desse parque que tive a chance de sair de Fernandópolis. Ele me convidou para fazer testes e substituir uma menina que iria sair. Era 2002. Tive que suar para passar, porque apesar de meu amigo, o coreógrafo Zeca foi muito exigente. Fiquei um ano e meio no Hopi Hari, e conheci muita gente do meio, mas não foi fácil, não. Tive que trabalhar em shoppings, em restaurantes, até que surgiram alguns trabalhos isolados. Pus na cabeça que iria trabalhar em navios, fiz vários testes, até que em 2008 consegui entrar.

CIDADÃO: Como funciona isso? Cada navio tem um corpo de baile?

BETE: Não, cada companhia. A companhia em que estou hoje é a Pullmantur, da Espanha. O diretor da companhia de dança é brasileiro, tem uma banda brasileira. O diretor precisava de uma bailarina com urgência para substituir uma moça que havia saído, e ligou para uma amiga minha. Nesse exato momento, eu estava com ela. Minha amiga disse que não queria, estava bem em Campinas e não queria sair de lá. Aí ela disse. “Tenho uma pessoa, aqui, que é tudo o que você quer”. Desligou, conversou comigo e voltou a ligar para o coreógrafo. Fui fazer o teste – se passasse, teria que ir para a Europa em duas semanas. Passei e fui embora. O nome do primeiro navio em que trabalhei é Empress.

CIDADÃO: O que achou da homenagem à sua mãe, feita no 2º Volume do “Nossa História, Nossa Gente”, lançado esta semana em Fernandópolis?

BETE: Fiquei muito feliz quando soube, foi uma ótima surpresa. Meu irmão também veio, ele subiu ao palco para receber o livro. Minha mãe mereceu essa homenagem, porque ela sempre foi uma lutadora. Felizmente, muitas pessoas sabem reconhecer isso. Queira Deus que eu tenha essa garra que minha mãe possuía.

CIDADÃO: Bailarino, assim como o atleta, tem carreira curta. Essa perspectiva a incomoda?

BETE: Às vezes, fico até com medo, sei que a “vida útil” do bailarino é curta. Você depende do seu corpo – e por mais que a cabeça queira executar, se o corpo não corresponde, não tem jeito. Confesso que, às vezes, tenho crises existenciais por causa disso. Não estou preparada para o final da carreira.

CIDADÃO: Vou citar gêneros musicais e você comenta: Jazz?

BETE: Jazz? All that jazz!!! (risos).

CIDADÃO: Tango?

BETE: O tango é um dos estilos que preciso aprender para me tornar uma bailarina completa, porque ele traz muitos benefícios.

CIDADÃO: Flamenco?

BETE: Esse sim é paixão! É muito completo, uma dança que vem do ventre.

CIDADÃO: E o samba?

BETE: Por incrível que pareça, não é minha praia. Gosto, mas é um gênero que aprecio mais pelo lado do canto. Adoro Cartola, por exemplo.

CIDADÃO: Antes de pendurar a sapatilha, você vai aprender a dançar o tango?

BETE: Com certeza. Não lhe digo que vou levar como minha profissão, porque são anos e anos – mas tenho que conhecer e aprender o tango, para completar o que espero para minha carreira e minha vida.