Quem leu “Tocaia Grande – A Face Obscura”, do mestre Jorge Amado, sabe do que estou falando. Quando nasce um povoado, antes de chegar à condição de cidade ele passa por transformações que são produzidas pelos anônimos trabalhadores que são, afinal, os seus construtores. Depois, vem a História Oficial e descreve os fatos ao sabor de seus interesses. Adorocidio Rodrigues é um desses construtores de Fernandópolis: aqui chegou em 1943, menino de dois anos, morou na Brasilândia, constituiu família e profissão, sempre investiu na cidade. Esta semana, ele me procurou pedindo que o auxiliasse na busca dos seus colegas da turma formada pela escola JAP em 1954. Enquanto ele falava, eu ruminava uns pensamentos: “Como é que não entrevistei o Adorocidio até hoje?!” Afinal de contas, eu o conheço desde os tempos em que a figueira do JAP era um pé de coentro, e sei que ele é uma inesgotável fonte de histórias sobre Fernandópolis. Casado com Inez Artioli Garcia Rodrigues, pai de Sandro, Fabiana e Miriam, avô de Sandro Junior, Felipe e Mariana, Adorocidio é filho do legendário Fiúca, que morreu aos 99 anos em 2011. Católico praticante – Inez é inclusive Ministra da Palavra – o casal cumpre sua saga na terra em harmonia com a sociedade. É ou não é uma (quase anônima) lição de vida? (Vic Renesto)
CIDADÃO: Você chegou a Fernandópolis com apenas dois anos de idade. O que fez seus pais se mudarem para uma região ainda tão inóspita?
ADOROCIDIO: De fato, chegamos aqui em 1943. Na época, se falava muito na Vila Pereira, as possibilidades que se abriam na nova comunidade que surgia. O que trouxe muitos bandeirantes foi exatamente isso. Essa conversa chegou ao meu pai lá em Poloni, uma cidade perto de Olímpia. Meu pai tinha espírito aventureiro e quis vir conhecer a tal Vila Pereira – e a Brasilândia, que o pessoal chamava de “Minguante”.
CIDADÃO: Por que?
ADOROCIDIO: Porque não crescia! (risos) Historicamente, a explicação é correta: naquela época, por causa da 2ª Guerra, o Carlos Barozi não podia outorgar escritura das terras (era italiano). Enquanto isso, o Joaquim Antonio Pereira, que não tinha esse tipo de restrição, dava terrenos, ajudava quem chegava. Por isso a Vila Pereira crescia. Mas nós permanecemos na Brasilândia muito tempo. Tanto que fiz o Grupo Escolar na Brasilândia.
CIDADÃO: Eram tempos muito ‘brabos’?
ADOROCIDIO: Ah, sim! Uma ocasião eu estava com um problema dentário e minha mãe me trouxe no dentista na Vila Pereira. Ela me disse: “Depois você pega a jardineira e vai pra casa”. Perdi a jardineira e aí ganhei uns bons sopapos dos “Pereira”. O pessoal batia mesmo. Cara da Brasilândia não podia vir aqui bancar o herói. Apanhava de graça. E vice-versa, né? Passou do ponto onde fica hoje o Quartel, levava o troco.
CIDADÃO: Havia jogos de futebol entre os times das duas vilas?
ADOROCIDIO: Sim. Só que sempre quebrava o pau, a rivalidade era muito forte. Parece que Fernandópolis sempre foi um lugar meio inflamado, isso também sempre aconteceu na política.
CIDADÃO: Chegando à adolescência, o que você foi fazer da vida?
ADOROCIDIO: Quando eu fazia o 4º ano na Brasilândia, meus pais resolveram mudar para Fernandópolis. Aí, acabei me transferindo para o JAP. Minha professora foi a Dona Guaraci Mansor de Oliveira. Tenho certeza de que muitos dos mais antigos se lembram dela. Então, acabei tirando o diploma no JAP. Moramos na Avenida Francisco Costa, depois na Avenida 1, perto da piscina. Aí, naquela época, eram as mães que procuravam empregos para os filhos. Minha mãe foi falar com um comerciante de linhas da Rua Brasil, em frente ao Pejô. Conseguiu me empregar. Fiquei poucos dias, porque não gostei do dono da loja e nem ele de mim. Naquela idade, eu gostava mesmo era de andar a cavalo. Tinha o Badeco e o Zé Rosquete, que possuíam muitos cavalos. Se você desse água para o cavalo deles, cuidasse, poderia pegar sem problemas para dar umas voltas. Vivia andando a cavalo, comendo frutas no mato, um vidão. Foi quando minha mãe arranjou emprego para mim na Farmácia Santo Antonio, do finado Oswaldo Zagati. Ficava onde hoje é o Bradesco. Do lado, tinha a rodoviária do Salioni, com vários boxes. Lembro de alguns episódios dessa época. Uma vez, um japonês subiu com a roda do carro na calçada e o guarda mandou tirar. Começou o bate-boca, eu quis interferir e o policial acabou levando todo mundo para a delegacia. Lá, estava o doutor Divino, que perguntou o que eu fazia lá. Em dois minutos ele resolveu a questão, o japonês se acalmou, ficou tudo bem. Doutor Divino era um cavalheiro e um homem de paz. Bem, continuei por vários anos na farmácia. Ocorre que o Oswaldo Zagati foi certa vez para São Paulo e eu aproveitei a brecha para dar umas voltas sem autorização numa motocicleta preta, linda, que o Zagati deixava trancada a sete chaves no fundo da farmácia. Tomei o porre de andar de moto naquele final de semana. Depois, guardei a moto, lavei, limpei, mas fui dedurado por outro funcionário da farmácia. Resultado: ele me mandou embora!
CIDADÃO: Aí, o que você foi fazer da vida?
ADOROCIDIO: Fui trabalhar com o Jonas, da Farmácia Bom Pastor. Em 1961, eu e o meu irmão Laurentildo inauguramos a Farmácia Bom Jesus. Eu tinha 20 anos. Permanecemos com ela durante 40 anos! Tanto que até hoje ela está no mesmo local, já com outros proprietários. Mas, naquela época, tinha sido inaugurado o Hospital das Clínicas, do Dr. Adhemar Pacheco e Dr. Serafim. O Laurentildo trabalhava no hospital e na farmácia; eu, na farmácia e dava plantão no Dr. Alberto Senra. Pegava todas as “buchas” porque queria formar uma clientela para a nossa farmácia. Nesses 40 anos, tivemos o privilégio de ter trabalhando na nossa farmácia – eu até costumo dizer que foi ao contrário, nós é que trabalhamos com ele – o “Seu” Coelho, o grande profissional que todo mundo sabe quem foi e o que representou para Fernandópolis. “Seu” Coelho ficou 18 anos com a gente. Foi uma lição de vida. Depois de todos esses anos no ramo, aposentei-me, abri uma empresa na área de agropecuária, pensando no filho que estudou Agronomia em Taubaté. Gostei dessa área, tanto que estou nela até hoje.
CIDADÃO: Vamos voltar ao começo da história. Em que ano você casou?
ADOROCIDIO: Em 1966. Conheci a Inez quando ela morava na Avenida Francisco Costa com a Rua Rio Grande do Sul. Eu morava ali por perto, ainda solteiro. Todo dia, quando vinha almoçar, ela ficava no vitrô para me ver passar. A Inez vai negar, mas ela ficava todo dia me esperando passar. (risos) À tarde, era a mesma coisa. Começamos a namorar – meio escondido, porque o pai dela, o finado Líbero Pedreiro, não queria nem ouvir falar de gavião rodeando sua casa. O duro é que ele tinha quatro filhas! Depois de algum tempo, nós estávamos no cinema e ela disse para eu sair por outra porta quando terminasse o filme, porque seu pai estava lá fora.
CIDADÃO: Vocês estavam no Cine Fernandópolis?
ADOROCIDIO: Sim. Esse cinema, aliás, tinha sido construído pelo meu sogro até a metade. Depois, passou a obra para outro, porque havia uma conversa de que a obra cairia porque foi construída sobre o antigo cemitério da cidade.
CIDADÃO: Lá existiu mesmo um cemitério?
ADOROCIDIO: Sem dúvida! Quando meu sogro abria os alicerces, apareceram muitos ossos, cabeças. O Cine Fernandópolis sempre teve essa fama de mal assombrado, tanto que certa vez teve um tumulto dentro do cinema que deixou algumas pessoas feridas. Estavam passando um filme normalmente quando a hélice que ventila a tela se soltou. Fez um barulhão, o povo se apavorou e aconteceu a maior confusão. Achavam que o cinema estava caindo, como dizia a lenda. Bem, mas voltando ao caso da Inez, eu disse pra ela: ou saímos daqui juntos, ou terminamos o namoro agora, porque não vou fugir do seu pai. Ela não quis e terminamos. Só depois de seis anos sem conversar foi que nós voltamos! Antigamente, os caras eram durões, hoje acho isso uma burrice. Eu mudava de rua, e ela também fazia questão de nem me olhar. Depois que o pai dela faleceu, como eu trabalhava em farmácia, passei a visitar a mãe dela. Acabamos reatando e nos casamos.
CIDADÃO: Então você não chegou a ser genro do velho em vida (risos).
ADOROCIDIO: Em vida, não.
CIDADÃO: Vamos falar dessa homenagem que vocês, alunos do 4º ano masculino B da turma do JAP de 1954 querem fazer para a professora Guaracy Mansor de Oliveira. Qual é a proposta?
ADOROCIDIO: Todo mundo tem boas lembranças de algum professor. Foi aquela pessoa que ajudou você a trilhar os bons caminhos. A Dona Guaracy era muito querida por todos nós, e assim estamos querendo prestar-lhe uma homenagem. Ela hoje tem 86 anos, é viúva e mora em Santa Fé do Sul. Penso em fazermos uma coisa simples, porque o importante é a intenção. Ela está lúcida, com saúde, e a melhor homenagem é em vida. Consegui a lista dos ex-alunos e já conversei com alguns – o Wilson Mantovani, o Jura Pessuto...Se a trouxermos a Fernandópolis, tenho certeza de que será um dia inesquecível. Peço aos colegas da turma de 1954 do JAP que entrem em contato comigo pelos telefones 3442-1332 ou 3462-1432.