Comitiva refaz a trilha das primeiras boiadas

20 de Agosto de 2025

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Comitiva refaz a trilha das primeiras boiadas

Grupo de cavaleiros de Novo Horizonte percorre a “Estrada Boiadeira”, primeiro portal do Sertão de Rio Preto, criada no final do século 19

 Os três fregueses sentados pachorrentamente em frente ao boteco da Vila Aparecida – também conhecida como “Vila Boiadeira”, perto de São João das Duas Pontes - nem esperaram o final da minha pergunta. Um deles apontou o dedo rumo ao leste e disse: “Foram por ali”.

 Eram 10h40 da última quinta-feira, 15, e eu procurava pelos integrantes da comitiva “Fé e Tradição”, que saíra de Rubinéia e que irá até Novo Horizonte, no centro do Estado de São Paulo.

 A Vila Aparecida é quase um arraial situado a cerca de 20 km de Fernandópolis. Provavelmente, o maior destaque do lugarejo seja exatamente o fato de que ele fica no trajeto da antiga Estrada Boiadeira, construída a partir da última década do século 19. A estrada era o escoadouro da produção pecuária do noroeste paulista e do Mato Grosso, que era trazida para os frigoríficos de São Paulo.

 Nos primórdios, o gado era atravessado em balsas sobre o grande Rio Paraná. Dali, percorria durante semanas a Boiadeira – na verdade, uma picada – até Jaboticabal, onde começava a “civilização” propriamente dita.  

VELHOS TEMPOS

 Depois de percorrer dois quilômetros na estrada poeirenta, ao fim de uma curva tive a sensação de mergulhar no passado, ou mesmo nos “causos” que meu avô Paulo me contava há meio século: à minha frente, em meio à poeira, havia mulas, burros, o som do sino da “madrinha” da tropa, homens suados, com trajes típicos, até mesmo um estandarte da comitiva. Só faltava mesmo a boiada.

 A poucas centenas de metros dali, ficava o córrego em cuja margem seria improvisado o pouso para o almoço. Gilmar Feltrin, 54 anos, era o chefe da caravana. Ele é um homem alto e forte, proprietário de terras em outro estado do país, onde cria gado de corte.

 Há quatro anos, Gilmar e alguns amigos de Novo Horizonte e região, onde residem, percorrem a Boiadeira anualmente. A aventura teve início depois que Gilmar, em visitas a Votuporanga, onde vivem parentes de sua mulher, levantou detalhes sobre a estrada.

 Logo conheceu Evandro Junior, o diretor de museus e patrimônio histórico de Votuporanga. Depois de muita troca de informações, ele criou a logística da viagem. Experiência não falta a Gilmar: há dez anos, ele e os amigos percorrem, sempre em junho, os 700 km entre Novo Horizonte e Aparecida do Norte em lombo de burro. “Daí vem o nome da nossa comitiva, ‘Fé e Tradição’: fé em Nossa Senhora e a tradição de andar em lombo de burros”, explica.

  O líder prossegue: “O que estamos fazendo é um resgate da tradição boiadeira, cujo ciclo parece terminado, já que aparentemente ninguém quer prosseguir com ele. Nosso objetivo é que essa tradição não se perca no tempo”.

  Gilmar revelou que a escolha pela Boiadeira se deve à tradição de mais de 100 anos da estrada: “Toda a economia desta região começou com a Boiadeira. As coisas certamente seriam muito diferentes, se não fosse ela. Pode ser que até mesmo algumas cidades nem existissem”, sugeriu.

 A cavalgada faz parte do projeto de Evandro (leia box), cujo nome é “Revivendo a Boiadeira”. Depois de deixar Rubineia no dia 12, o grupo estava no dia 15 exatamente no ponto previsto. Gilmar conta que alguns trechos da estrada já desapareceram. “Em muitos locais, não vê mais a estrada, porque quebraram barrancos, mudaram a paisagem. As pessoas já não dão a mesma importância à Boiadeira”, lastimou.

 A chegada a Novo Horizonte deverá acontecer no dia 24, quando haverá um almoço de confraternização entre os cavaleiros e suas famílias. “Vai ser uma coisa simples. Se fôssemos chamar todos os nossos amigos, teríamos que fazer um almoço para 400 pessoas”, brincou Gilmar Feltrin.

MESTRE-CUCA

 Enquanto o grupo descansava e esperava o almoço, percorri o acampamento. Gilmar me mostrou Brasinha, a madrinha da tropa. Baixinha, dez anos de idade, a mulinha é respeitada por todos os outros animais. Se Brasinha resolver retroceder, toda a tropa volta, garantiu.

 Mais adiante, estava a cozinha improvisada. O cozinheiro da comitiva se chama Eduarte Sebastião Ribeiro, tem 49 anos e vive em Maracuama, na região de Novo Horizonte. Na verdade, ele é um agricultor apaixonado pela vida de peão. Há dez anos, Ribeiro participa desse tipo de evento.

 Aprendeu a cozinhar na roça. No dia da reportagem, o cardápio era arroz tropeiro e feijão gordo, além de bife acebolado.

 Na verdade, o menu não muda quase nada a cada dia: no forte calor de final de verão, não é possível levar mantimentos perecíveis. Assim, a bóia fica restrita ao arroz com defumados e embutidos, como lingüiça e carne de sol. “Quando conseguimos uns ovos no trajeto, eles também entram no cardápio”, disse o cozinheiro, enquanto picava alho e cebola para o refogado.     

 O decano do grupo, constituído por oito cavaleiros, é Chico Barufi, 85 anos. Nascido em Monte Alto, ele já morou em Pedranópolis e outros municípios. Hoje, vive em Votuporanga. Quando lhe disse que era de Fernandópolis, ele ficou entusiasmado e passou a falar desbragadamente da Exposição Agropecuária e das cavalgadas tradicionais da cidade.

 É o único da turma que não é da região de Novo Horizonte. Apesar da idade, o velho Barufi não admite ficar de fora da comitiva. “Gosto mesmo. Não sei se eles também gostam de mim, ou se eu estou acabando de pagar meus pecados”, afirmou o divertido octogenário, numa referência ao forte calor do meio-dia. O cavaleiro mais jovem é Rafael, de 25.

 Era hora de partir, porque repórter não tem, no século XXI, tempo para “cozinhar” devidamente a reportagem. Ideal seria aceitar o convite para comer o arroz tropeiro, deixar-me ficar, quem sabe ouvir e contar causos do passado.

 Despedi-me e saí devagar, para não levantar poeira sobre o pouso daqueles guardiões das tradições caboclas. No trajeto de volta, voltei a pensar nas mudanças que o tempo provoca. Assim como as grandes reportagens vão desaparecendo, engolidas pelo jornalismo fast-food, as tradições regionais são engolidas pela moenda do progresso.

 Não, não perguntei ao Gilmar se havia pouco boi e muita cana pelo caminho que eles percorreram. Não tive coragem.    

                 Estrada Boiadeira é tema de filme em fase de produção

 A Boiadeira será alvo de um documentário. Com a autorização, pelo Estado, da captação de R$ 50 mil para a produção, o filme será produzido por Evandro Júnior Ferreira da Silva, diretor do setor de museus e patrimônio histórico de Votuporanga.

 Em sua época de faculdade, Evandro iniciou uma pesquisa sobre a estrada. Por volta de 2003, ele levantou os trechos ainda transitáveis da estrada entre Rio Preto e Rubinéia, com seus vilarejos, capelas e cemitérios. O pesquisador descobriu muitos personagens antigos da estrada que ainda vivem em seus arredores.

 Depois de um levantamento de fotos, textos e mapas sobre a Boiadeira, Evandro descobriu o ano da criação da estrada: 1892. Ele dispõe de um mapa, de autoria do engenheiro Olavo Hummel, de 1895, com o trajeto completo. Juntou-o ao seu projeto, que inscreveu no PROAC – Programa de Ação Cultural da Secretaria Estadual de Cultura.

 O projeto foi aprovado em novembro passado. Depois de captar recursos junto a uma usina de açúcar e álcool da região, Evandro tem até o final do ano para produzir as imagens do filme. Tudo isso será editado em 500 DVDs, que serão distribuídos nos municípios do entorno da Boiadeira.   

 Na quinta-feira, Evandro e um cinegrafista aguardavam a chegada da comitiva “Fé e Tradição” no pouso onde almoçariam. Ele explicou que o filme será distribuído para escolas e bibliotecas da região. O objetivo é transmitir às próximas gerações informações sobre a importância da Boiadeira, de início pouco mais que uma picada rasgada no meio da mata virgem, para interligar São Paulo ao Mato Grosso.

 Por seus 385 km entre a balsa do Rio Paraná e Jaboticabal, a estrada era usada por bandeirantes e tropeiros, que conduziam boiadas com até 3 mil cabeças. A viagem nunca demorava menos que um mês.  O estradão começava em Jaboticabal, o último ponto habitado no Estado, e seguia até Porto Taboado, em Aparecida do Taboado.

 Tempos depois, surgiu o “braço” que ligava Rio Preto a Barretos. A origem é explicada pelo interesse econômico, já que em Barretos havia importante frigorífico.  Como diz Evandro Junior, “os três fatores do desenvolvimento econômico do Noroeste Paulista foram, na sequência cronológica, a Boiadeira, a estrada de ferro e a rodovia”.

 Com efeito, ao longo da estrada nasceram vilarejos, desbravadores surgiram e cidades apareceram.  Alguns pontos históricos ainda resistem ao tempo, como algumas capelas e pequenos cemitérios.