Puff mergulha no “passado de ouro” da cidade

20 de Agosto de 2025

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Puff mergulha no “passado de ouro” da cidade
 Conheço pouca gente com a memória de Valdemar Ferreira da Silva, o “Puff”. Nascido em Fernandópolis na década de 50, o hoje professor de História (no Guarujá), formado pela FEF, com especialização na Universidade São Judas, de São Paulo, em Crítica de Arte, é filho de Vicente Ferreira da Silva e de Generosa Nogueira da Silva, gente que entrou para os anais do município tanto pela condição de pioneiros quanto por sua participação na construção da cidade. Criado na Rua Brasil, quase no centro, Puff é um memorialista nato. Recorda fatos, pessoas e lugares com uma precisão impressionante. Ele esteve por aqui dias atrás, matou saudades e conversou com a reportagem sobre os chamados “tempos dourados” de Fernandópolis – aqueles dos quais a gente se orgulha, e não de outros tempos, perigosamente próximos, de que quase todos nós nos envergonhamos. Mesmo longe da cidade, Puff sabe que isso está – lamentavelmente – acontecendo por estas bandas.   

 

CIDADÃO: Nesses doze anos que você está fora de Fernandópolis, é possível perceber que você não perdeu nem o vínculo, nem o carinho pela cidade. O que ela representa hoje para você?

PUFF: Fernandópolis é a minha cidade natal, a minha raiz. Aqui ainda moram alguns familiares e isso, somado a alguns amigos que ainda tenho e cultivo por aqui, representam muito para mim, porque onde quer que eu vá, faço questão de frisar que sou de Fernandópolis. Isso acaba sendo uma referência muito forte: quanto mais distante estou da cidade, mais eu sinto que sou um fernandopolense.

CIDADÃO: Esse vínculo com a cidade já lhe abriu portas lá fora?

PUFF: Sim, claro. Sempre abre portas.

CIDADÃO: Quais são as suas referências afetivas do tempo de garoto?

PUFF: Bem, além da minha família, tenho na lembrança os primeiros amigos de infância, que moravam ali por perto de casa, na Rua Brasil, no quarteirão entre a Avenida Manoel Marques Rosa e a antiga Praça Coutinho Cavalcanti, hoje Praça Dr. Fernando Jacob. Era o pessoal com quem eu dividia as brincadeiras da infância, jogava futebol. Poderia citar o Henrique Ramos, o Germaninho Hernandes, o Marquinhos Marão, toda a família Ferrari, como o Armelindinho, meu contemporâneo, o Paulinho, o Piluca, a Tânia, a Taís...enfim, uma infinidade de amigos. Em frente de casa morava o Marcos Resende Jacinto, filho do gerente do Banco do Comércio e Indústria, “seu” Alcides. Tinha o Edinho Almeida, que hoje vive em Ribeirão Preto. A gente, depois dessa fase da infância, vai ampliando o círculo de convivência, que passa a ser também o ciclo de colegas de escola, que no meu caso começou no GEJAP, hoje JAP. Aí vêm os clubes, os grupos de amigos, a ADF (primeira piscina da cidade), os bailes do FEC...

CIDADÃO: Voltando à sua infância: como era o seu quarteirão? Qual é a primeira lembrança que vem à memória?

PUFF: Tem uma coisa bastante curiosa que é o seguinte: praticamente não existiam muros naquela época. Basicamente, os vizinhos da minha quadra tinham os quintais fundidos uns com os outros. Era comum ver os amigos passarem de um quintal para o outro com toda naturalidade, cada um tinha seu pomar, a gente desfrutava dos espaços comuns, era como se fosse uma grande família, um grande clã que vivia ali naquele pedaço. Tinha a família Uehara, de japoneses, a família Solbi, que era de sírios, depois uns espanhóis do outro lado...eu me sentia como se estivesse num pequeno continente, misturado a espanhóis, italianos, japoneses. Ah, havia também a família Martins, donos de uma sapataria, são os avós do Vico Tangoda, que hoje está em São Paulo. Havia a família Mantovani e, na esquina, a família do Leodegário Fernandes de Oliveira. O Paulinho foi meu amigo de infância.

CIDADÃO: Na outra esquina, era a sorveteria Nosso Bar...

PUFF: O melhor sorvete de ameixa do mundo! Eu adorava a Vaca Preta!

CIDADÃO: Com quem você costumava andar nessa época?  

PUFF: É curioso, mas a minha segunda cultura é a japonesa. Devo isso à família Yamada, que me proporcionou a chance de conhecer o Clube Tóquio, onde eram exibidos filmes que vinham do Japão. Uma vez por mês, pelo menos, tinha cinema. Eles me convidavam para as gincanas e para o Bom Odori, Então, assimilei muita coisa da cultura japonesa, da culinária à arte e à cultura. Até hoje me sinto “pertencente” à colônia. No centenário da imigração japonesa, fui convidado a me reunir com eles, e o pessoal da “velha guarda” se lembrou de mim como alguém que sempre freqüentou a colônia. Mas não posso esquecer outras colônias que marcaram minha juventude, como a portuguesa.

CIDADÃO: Qual é a memória que você tem do seu pai, o velho Vicente?

PUFF: Eu me lembro do meu pai no balcão do armazém dele, ali na Rua Brasil, que era o ponto de encontro de várias pessoas da cidade – pelo comércio em si, mas também pela boa conversa do velho. Ele vivia cercado de bons proseadores. Meu pai foi um dos primeiros assinantes, em Fernandópolis, do jornal Diário de São Paulo. A edição do dia ficava no balcão, à disposição dos amigos e fregueses. Numa era pré-televisiva como aquela, o jornal ganhava importância como veículo de acesso às notícias do país e do mundo. O rádio também vivia ligado, e era a outra forma de contato com o mundo. Ele emprestava o jornal, era um cara democrático. O mundo político da cidade costumava passar por lá. Tenho lembrança nítida de todas as pessoas, seja na época em que estavam em campanha, seja quando já exerciam mandatos. Meu pai era agregador, tido como homem de bom conselho. Gozava de muita autoridade moral.

CIDADÃO: E quais eram os “points” que o Puff adolescente freqüentava?

PUFF: Tênis Clube, Casa de Portugal, ADF, o Minuano, um restaurante na esquina da quadra do FEC, que foi o local dos meus primeiros bailes. Como a cidade era pequena, você conhecia todo mundo. Tinha amizade próxima com alguns e conhecia todos os demais. Era uma época bem sadia, as pessoas se divertiam de maneira agradável, sem excessos. Havia as brincadeiras dançantes aos domingos no FEC, depois vieram os bailes de férias. Tomei gosto por dançar. Isso ficou até hoje.

CIDADÃO: E o lado cultural, como era?

PUFF: Para falar da questão cultural, tenho que me remeter primeiramente à Semana Universitária. Já na adolescência, me lembro que lia nos jornais que iria acontecer tal programação no curso da semana, que era realizada nos meses de julho. Aquilo marcava as férias na cidade. Fernandópolis tinha universitários espalhados por todo o Brasil, que se reuniam e promoviam grandes encontros e eventos como peças de teatro, shows musicais, palestras, exposições de arte. Lembro-me, também, dos salões de arte que a professora Sibéria Violin promovia em espaços que estavam desocupados no centro da cidade. Isso é uma coisa que hoje é moda no mundo inteiro: ocupar espaços desocupados para promover a arte. Recordo-me que a dona Sibéria chegou a usar o prédio do Banco Comercial de São Paulo, com a mostra de trabalhos dos alunos do Instituto de Educação Estadual. Tinha também a noite da poesia e canção, no FEC. E também os festivais da canção, na quadra coberta do Instituto de Educação. O Dimas Manoel Garcia, velho amigo de infância, era sempre um dos favoritos ao primeiro lugar, com suas belas músicas. Lembra-se de quando ele venceu o festival com a música “Divina”, interpretada pela Mitiê Konishi? Havia outros, como o Urias do Amaral, que cantava uma canção sobre a conquista da lua, o Ulisses Coutinho, que fez uma apologia à calça Lee, tinha o tecladista Silvio Gomes Regra...bons tempos! Na literatura, tenho que citar os poetas Léo Cunha e Bento Celso da Rocha, além do jornalista Merciol Viscardi, grande agitador cultural.

CIDADÃO: Quando não havia faculdades na cidade, tínhamos semana universitária. Hoje, com duas universidades, esse movimento cultural desapareceu. Como explicar isso?

PUFF: Naquele tempo, os estudantes de curso superior “vestiam a camisa”, na acepção da palavra, dessa condição de universitários. Havia orgulho em se dizer aluno de um curso superior. Hoje, a postura do estudante ficou um pouco diferenciada em relação aos anos 60 e 70, por exemplo. Também as circunstâncias daquele período podem explicar isso, já que era um tempo sombrio, de ditadura, o que fazia as pessoas assumirem posições mais conscientes. Com isso, além de desenvolverem um sentido coletivista, elas usavam manifestações como a arte para expressar sua indignação com aquele estado de coisas. As coisas hoje são meio pasteurizadas. Vivemos hoje o império do descartável.

CIDADÃO: Você mantém um hábito que está em extinção: o de fazer visitas. É uma coisa muito peculiar, não é?

PUFF: Aprendi isso vivendo numa casa de família baiana – a minha -, que estava sempre de portas abertas. Na minha casa, sempre ia gente. Naquele tempo, vinham muitas famílias do campo fazer compras na cidade, e meus pais as recebiam para tomar água, um cafezinho, bater um papo. Cresci numa casa assim. Creio que a vida tem que ser assim mesmo, não há melhor forma de cultivar as relações humanas.