A felicidade de ser médico

20 de Agosto de 2025

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A felicidade de ser médico
 O ortopedista Paulo Vladimir Brianti é formado há 33 anos. Logo após concluir a residência médica, ele retornou a Fernandópolis, onde sempre sonhou exercer a profissão. Casado com Marlisa, pai de Daniel (também médico) e de Bruna, o Paulo Brianti que encontrei na última quinta-feira não era o tristonho corintiano que eu imaginava (seu time perdera para o Botafogo na noite anterior): ao contrário, naquele instante ele tinha em sua sala na Santa Casa quatro alunas do 6º ano de Medicina – Isabela e Maria Luiza (que são de Pindorama), Bruna, de Valparaíso, e Isamara, de José Bonifácio. Preceptor do estágio de Ortopedia e Traumatologia, Brianti falava às garotas, acreditem, sobre a importância do Espaço Ecumênico recém-inaugurado na Santa Casa. Para ele, os pacientes, seus parentes, médicos e paramédicos terão agora um espaço voltado para a fé e o conforto – “Esses também são fatores de cura”, afirmava. No fim das contas, as moças acabaram assistindo à entrevista. Apaixonado pela profissão, Brianti vê a Medicina – e a vida - de maneira filosófica. Uma feliz escolha de entrevistado, nesta pauta em homenagem ao Dia do Médico. (Vic Renesto)    
CIDADÃO: Qual é a sua visão global do mundo da Medicina?
BRIANTI: Um dia, sem querer desenvolvi uma espécie de terapia, ao tentar construir, num desenho, a “coluna” da nossa vida. Havia a vértebra representativa do amigo, a de pai, de filho, de marido, de vizinho e a de profissional. Esta última era a vértebra maior, porque quase tudo na vida acaba sendo relacionado à profissão. A gente não treina para ser pai, para ser marido, vizinho, amigo – mas a gente passa a vida treinando para ser médico – esquecendo que, por trás de nós, existem muitas outras coisas essenciais para que possamos viver bem. Para isso, não é preciso diminuir o tamanho da vértebra da profissão, mas aumentar as demais. Isso é fundamental para viver em equilíbrio. Além disso, a medicina é muita transpiração. Não se tem tempo para conversar com os filhos, os amigos.
CIDADÃO: Há alguns anos, você teve um problema de saúde e foi levado de ambulância para Rio Preto. Qual é a sensação de estar do outro lado?
BRIANTI: A sensação é de impotência. Você pensa assim: “Eu, que fiz tanta coisa para tanta gente, que ajudei centenas de doentes, não posso fazer nada por mim mesmo”. É o mesmo que o piloto do avião virar para os passageiros e dizer: “Olha, esta coisa vai cair”. O remédio foi torcer para que tudo desse certo.
CIDADÃO: E depois que tudo passou?
BRIANTI: Depois que a crise passa, você tenta reconquistar, refazer tudo o que fazia antes de ficar doente. Aí, no dia em que chega à conclusão de que já retomou seu ritmo de sempre, você diz: “Não vou mais brecar, mas vou desacelerar. Quero curtir mais o outro lado”. Mas tenha certeza de uma coisa: nossa tendência é querer chegar ao mesmo patamar em que você estava antes de ficar doente. É ali a sua base, seu alicerce, onde você é útil. O maior medo, ao ficar doente, é o de não ser mais útil. E agora, você não consegue, de uma hora para outra, desenvolver outras atividades, não-médicas, porque durante toda a sua vida você não se preparou para isso. A sua coluna não foi treinada! Aí entra, de novo, a questão da falta de preparo para ser vizinho, amigo, etc. A gente aprende muito com as dores, com o sofrimento. Isso leva à reflexão. O médico não aceita as auto-limitações com facilidade.
CIDADÃO: No próximo dia 18 comemora-se o Dia do Médico. Essas moças (as alunas de Medicina) serão médicas daqui a 50 dias. O que você tem a dizer para elas?
BRIANTI: Que a profissão é maravilhosa, se eu pudesse começar de novo eu o faria, e do mesmo jeito que fiz desde o ingresso na faculdade. Tenho paixão pela medicina, e nesses 30 anos a paixão não diminuiu. Só que eu gostaria que elas não se esquecessem das outras coisas que a vida tem – família, amizade, amor, carinho, generosidade. Mesmo porque o paciente precisa que o médico tenha essa sensibilidade. Às vezes, deixar de lado esses valores implica perder qualidade profissional. Seu potencial não pode ser todo jogado em cima da profissão. A vida é muito mais do que isso. Quando você está bem na sua vida lá fora, você produz muito mais para a sua profissão. Além disso, a vida fica mais saborosa.
CIDADÃO: Vamos pular do filosófico para o estrutural: você acha que a saúde pública no Brasil melhorou nos últimos 30 anos?         
BRIANTI: Olhe, não vejo melhora na saúde pública: vejo melhora na medicina brasileira, que avançou muito. Mas a medicina pública ainda está muito aquém do desejado. Ainda existe uma subdivisão de atendimento onde o médico e o paciente não têm interação. O paciente vai ao médico e ouve: “Você tem que procurar fulano ou beltrano”. O paciente fica rodando sem ter uma troca com o profissional da medicina. Nesse aspecto, a realidade da saúde pública tem deixado cada vez mais a desejar. O que se vê hoje é que o médico tem que produzir para o seu “patrão”, não para o paciente. O “patrão” quer que ele atenda um número “x” de pacientes – quando na verdade, se ele produzisse mais em qualidade para cada doente, o retorno seria maior – inclusive para o “patrão”.
CIDADÃO: Como vai a Santa Casa de Misericórdia de Fernandópolis? O projeto para transformá-la em hospital-escola está caminhando?    
BRIANTI: A Santa Casa, como tantas por aí, tem passado por dificuldades. Nossa Santa Casa, com as mudanças na parte administrativa, teve certa perda na parte técnica, em favor da administração empresarial. O empresário, evidentemente, trabalha em cima da relação custo-benefício. São as planilhas de recebimentos e gastos. Agora, quem lida com os doentes no dia a dia, que é o caso dos médicos, não pode levar em consideração apenas isso. Então, estamos passando ainda por uma fase de tentativa de fazer da Santa Casa uma empresa. Só que fica difícil administrá-la como empresa: vai fechar sempre com déficit, porque a saúde, com a Constituição de 1988 virou “um direito de todos, um dever do Estado”. Ora, o Estado nega, o Estado repassa para os médicos e para as instituições como a Santa Casa a obrigatoriedade de atender o doente. E, às vezes, ele não suplementa com verbas para que não fiquemos no negativo. Então, empresarialmente não dá para administrar a Santa Casa. Tem que ter recursos que não do SUS para que se restabeleça o equilíbrio. A Santa Casa ainda procura esse caminho. Sinceramente, não sei como isso vai ser resolvido.
CIDADÃO: E o pronto-socorro municipal, não deveria ser à parte da Santa Casa? Só para citar um exemplo, o pronto-socorro de Jales é apartado da Santa Casa de lá. E a lei diz que esse serviço é de responsabilidade das prefeituras.
BRIANTI: Essa é uma situação que eu mesmo, como médico, já tentei colocar em várias reuniões a minha opinião – e sempre houve dificuldades. Nosso pronto-socorro não atende só Fernandópolis: atende toda a região e até cidades de outros estados. Se o pronto-socorro fosse terceirizado e sua manutenção fosse rateada entre os municípios, poderia ser uma solução. Mas a verdade é uma só: a Santa Casa de Fernandópolis não tem obrigação legal de “tocar” o primeiro atendimento de saúde. Isso tem que ser arcado pelo município. A Santa Casa é um serviço secundário de saúde. Aqui virão as internações, as cirurgias, os exames complementares. Mas o tratamento inicial deveria ser no pronto-socorro, como em qualquer outro lugar. O ideal é que o serviço seja municipalizado. Só assim a Santa Casa poderia se estruturar melhor. É do conhecimento de todos o prejuízo que o pronto-socorro nos causa.
CIDADÃO: Se a Santa Casa se transformar em hospital-escola, terá uma tabela diferenciada do SUS. O que significa isso em termos financeiros?       
BRIANTI: Esse valor já foi 1.8. Isso significa que se uma consulta custa 10 reais, passaria a custar 18. Hoje, não sei como é a proporção, mas é realmente diferenciada. Em valores financeiros, o hospital-escola é muito bom para o hospital.
CIDADÃO: Qual foi a grande emoção que você vivenciou, e que pela qual você jamais passaria se não fosse médico?
BRIANTI: Como médico, tive muitas gratificações pessoais. Mas duas delas foram muito marcantes. Uma vez, atendi um menino que viajava com o braço para fora do ônibus e um caminhão passou e praticamente arrancou seu braço. Quando vimos o quadro – sem circulação, a mão em cianose – comentei com o Zé Maria, meu colega e amigo, que seria um procedimento até fácil, porque bastaria regularizar o coto da amputação e estava resolvido. Tive uma surpresa muito grande. Fiquei segurando o braço do menino até que o anestesista chegasse e de repente, ao olhar o braço, notei que voltara a circulação. Pensei: “Meu Deus, a coisa mudou – e pra melhor”. Refizemos aquele braço e tratamos com todo o carinho. Se ele tivera aquela chance, nós não poderíamos desperdiçá-la. Hoje, encontro esse rapaz na rua e ele me mostra o braço, feliz. A outra experiência se deu com um menino que corria de bicicleta e bateu o joelho no farol de um carro. Sua perna ficou pendurada. Eu não estava de plantão, mas a família me chamou. Ao chegar, já estavam encaminhando o garoto para outra cidade, pois o quadro era complicado. Diante daquele desespero da família, pedi-lhes que me deixassem atender ao caso. Eles disseram que sim, que confiavam em mim. Graças a Deus, deu tudo certo. Se eu não fosse médico, não teria tido a chance e o prazer de ajudar essas pessoas. Quando os vejo por aí, sinto o quanto isso foi importante na minha vida.  
OLHOS
O primeiro atendimento de saúde é obrigação do município
Nós nos preparamos muito para ser médicos e pouco para sermos cidadãos
Eu segurava o braço do menino quando a circulação voltou