Como de costume, cinco amigos se reúnem e discutem assuntos de alta relevância. Com bastante entusiasmo, cada um defende seu pensamento. Mas, sem animosidade. Um deles, contudo, permanece calado, quase sempre. Quando muito, esboça algum sinal, e de indiferença. Ele é inteligente, instruído, astuto e cáustico.
Certa feita, convocado a se manifestar, e depois de alguma insistência, responde que o debate não passa de uma modo polido e atual do instinto truculento e bestial do homem, algo que morreu no tempo. Diz: “Os anjos, que são a perfeição espiritual e eterna, jamais entram em controvérsia”. Um dos amigos, talvez fatigado de esquivas, contesta o argumento celestial daquele cujo hábito era a quietude.
Então, Roberto, o amigo silencioso, resolve falar. Porém, impôs uma condição: “se querem me ouvir, conto-lhes a história de minha vida, desde que permaneçam calados, pois, como sabem, eu não discuto”. E, assim, iniciou sua narrativa com uma proposição um tanto insólita: “cada homem carrega duas almas, e não uma”.
“Duas?” A expressão nos rostos interrogativos dos ouvintes. Roberto prossegue: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma interior e outra do lado de fora. Como uma laranja cortada ao meio” E avisa, antes de continuar: “Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; mas não admito réplica. Se me replicarem, vou embora”. Os amigos, em meio a fumaça dos charutos e calibrados pelo whisky, decidem contemplar aquele esforço argumentativo.
“A alma exterior do homem pode ser um espírito, um fluido. Ou, pode ser um outro homem ou uma mulher, mesmo vivos. E também um objeto. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; e assim igualmente um livro, uma máquina, uma porção de dinheiro etc. E está claro que a função dessa segunda alma, como acontece com a primeira, é transmitir a vida, trazer vivacidade; e as duas almas completam o homem, que é, assim, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde, naturalmente, metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a aniquilação da existência inteira”, disserta Roberto, convicto.
Meio perdidos, embora uma vez mais atentos, os amigos ouvem ainda: “Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma. Ela muda de natureza e de estado. Existem pessoas, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau e, mais tarde, uma chefia de uma empresa, um cargo público. Eu conheço uma senhora que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Mas, aqui, restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...”
Os quatro companheiros, ansiosos para ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! Aquela sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão sobre Roberto, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração de parte de sua vida:
“Eu tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ingressar no cargo Oficial Magnânimo. Não imaginam o acontecimento que isto foi em minha casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! Tão contente! Chamava-me de o seu pequeno Oficial Magnânimo. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na cidade onde fui criado houve alguns despeitados; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que não é fácil passar num concurso assim.
Por outro lado, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que a festa de comemoração me foi dada por amigos... Vai então uma das minhas tias, Miluca, viúva do Dr. Palhares, ambos muito me ajudaram no pagamento dos estudos, que morava num sítio escondido e solitário, desejou ver-me, e pediu que eu fosse passar uns dias com ela e levasse meu terno, o que usaria na posse. Até como agradecimento, fui, porque a tia Miluca chegou a escrever a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E, realmente, abraçava-me! Chamava-me também de o seu pequeno Oficial Magnânimo. Achava-me bonito. Como era um tanto patusca, ‘sem noção’, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a região não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre Oficial Magnânimo; era Oficial Magnânimo para cá, Oficial Magnânimo para lá, Oficial Magnânimo a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse apenas de Betinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que eu era o ‘senhor Oficial Magnânimo’.
Um cunhado dela, irmão do finado tio Dr. Palhares, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o ‘senhor Oficial Magnânimo’, não por gracejo, mas a sério, e à vista dos empregados, das pessoas que nos visitavam, e que, naturalmente, foram pelo mesmo caminho.
Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Miluca chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um antigo espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...”
“Espelho grande?”, indaga um dos amigos.
“Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que demovessem tia Miluca do propósito; ela respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o senhor ‘Oficial Magnânimo’ merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, desde o dia que fui informado do resultado do concurso, carinhos, atenções, obséquios de toda a parte e mais este estardalhaço de tia Miluca fizeram em mim uma rápida transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Podem ter ideia do que aconteceu comigo?”, pergunta Roberto.
“Não”, respondeu um dos ouvintes, numa resposta que era de todos.
Roberto explica: “O Oficial Magnânimo eliminou o homem. Durante alguns dias, as duas naturezas equilibraram-se; mas, não tardou que a primitiva, daquele rapaz interiorano e acanhado, cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, as festas com os amigos, mudou de natureza, e passou a ser a bajulação, a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto de Oficial Magnânimo, mas nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com meus superiores; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?”
“Custa-me até entender”, respondeu um dos ouvintes.
“Vai entender”, diz Roberto. “Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se apagava, a do Oficial Magnânimo tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente Oficial Magnânimo.
Ora, um dia recebeu a tia Miluca uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente por perto, estava mal e à morte. Até mais, sobrinho! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio, já que havia uma tempo para que eu tomasse posse do cargo. Creio que, se não fosse a aflição, ela disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos empregados da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O Oficial Magnânimo continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, pela falta daquela bajulação de tia Miluca e seus convidados, e a consciência mais débil. Os empregados punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria. Senhor Oficial Magnânimo, de minuto a minuto; Oficial Magnânimo é muito bonito; Oficial Magnânimo há de ser Excelso Oficial Magnânimo um dia; Oficial Magnânimo há de casar com moça bonita; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah! pérfidos! Mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados”.
“Matá-lo?”, interrompeu um dos amigos.
“Antes assim fosse”, Roberto logo emendou.
“Então, eles tramaram coisa pior?”
“Ouçam-me”, pediu Roberto. “Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido sumir dali durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, as casas dos empregados, tudo; ninguém, nenhum molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos. Nenhum ente humano ficou naquele sítio.
Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Miluca, que mal sabia da intenção daqueles danados; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei a segunda opção, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Palhares voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Palhares não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Miluca: - Never, for ever!- For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?”
“Sim, pois parece que tinha um pouco de medo”, sorriu um dos amigos.
“Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, vestia-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam Oficial Magnânimo; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único, porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Nada, coisa nenhuma. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo jurídico; não escolhi nada, definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Miluca, deixava-se estar. Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel”.
“Mas não comia?”
Roberto narra: “Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava discursos, trechos latinos, artigos de lei. As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...”
“Na verdade, era de enlouquecer”.
“Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo o terno e a gravata com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha idéia...”
“Diga”.
“Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar”.
“Mas, diga, diga”.
“Lembrou-me vestir a vestimenta de Oficial Magnânimo, um garboso terno e gravata. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e...não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o Oficial Magnânimo, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os empregados, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de uma apatia, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de Oficial Magnânimo, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...”
Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.