O mundo visto de um veleiro

20 de Agosto de 2025

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O mundo visto de um veleiro
Desde pequeno, Matheus Eduardo Malavazzi sentia que as ruas de Fernandópolis, que ele percorria velozmente em seu skate, não eram suficientes para alojar seus sonhos. O filho de Iveraldo Antonio Malavazzi e de Cecília Carmen Bertolote Malavazzi mudou-se, aos 18 anos, para Florianópolis, onde começou a estudar Engenharia Ambiental. Logo o apelo do surf atraiu Matheus. O mar se encarregou de dar asas ao sonho de viver uma vida livre, alternativa, onde o tempo fosse calculado de acordo com as marés e os ventos. Hoje, aos 28 anos, Matheus e a namorada, a brasiliense Andréa, percorrem os sete mares a bordo do veleiro “Marleesh”, de fabricação norte-americana, que eles compraram de um espanhol e reformaram com o próprio trabalho braçal. Os preparativos da primeira viagem duraram dois anos. Nesse tempo, Matheus e Andréa se dedicaram a estudar navegação, meteorologia, mecânica naval e outras ciências imprescindíveis à aventura a que se propuseram. Os recursos para custear o projeto de vida do casal vêm da participação em feiras internacionais, onde Matheus expõe e vende seus trabalhos em bambu, e do fretamento do barco para passeios e mergulhos panorâmicos de turistas. Nesta entrevista, o jovem de Fernandópolis explica sua visão de mundo e fala da alegria de ter as gaivotas e baleias como parceiras e o mar como escritório.    
CIDADÃO: Como começou essa paixão pelo mar e pelas viagens?
MATHEUS: Eu estava morando em Florianópolis, onde havia passado no vestibular de Engenharia Ambiental. Quando menino em Fernandópolis, eu era skatista. Em Floripa, logo comecei a surfar, mergulhar. Morava perto da praia, por isso estava constantemente em contato com o mar, daí a paixão. Eu via os barcos e passei a desenvolver um sonho de ter o meu próprio. Todo mundo pensa que essa é uma opção muito distante, mas não é bem assim. Se você tiver um projeto e trabalhar em cima dele, é uma possibilidade palpável, não é só para milionários, não. Aliás, morando no barco você economiza muito dinheiro.
CIDADÃO: Em que praia você morava?
MATHEUS: Na Praia do Santinho. Nessa época, comecei a trabalhar na construção de estruturas de bambu, coisa que faço até hoje. Por causa disso, parei a faculdade no terceiro ano e passei a viajar. Há quatro anos vou para a Europa, passo os verões lá. Normalmente, são oito meses na Europa e quatro meses aqui.
CIDADÃO: Então, você vai atrás do sol?
MATHEUS: Sempre atrás do sol. Só que, por força do meu trabalho, viajava com uma mochila gigantesca nas costas, e pensava como viabilizar uma vida assim. O barco seria a solução, a forma de conciliar meu trabalho com a vontade de sempre conhecer lugares novos. Aí, conheci a Andréa, hoje minha namorada, e descobrimos o sonho comum de ter um barco. Ela já mergulhava nesse tempo. Sabemos que nada vem por acaso, então passamos a estudar, ver como funciona, a legislação de navegação. Oceano, navegação, barco, são coisas complexas. Pesquisamos e vimos que não era inviável. Hoje, há muita gente com renda reduzida que vive em barcos e viaja pelo mundo afora. A Andréa já tinha morado na Austrália e na Europa, também era viajante.
CIDADÃO: Você participa de festivais internacionais ligados à sustentabilidade. Como é isso?
MATHEUS: São festivais de arte e cultura alternativas. A mídia não dá espaço para isso. São organizados por organismos internacionais que inclusive financiam projetos, desde que os considerem viáveis. Temos planos de redigir um projeto de observação de mamíferos marinhos, que fazemos no decorrer de nossas viagens. Esses festivais envolvem sustentabilidade e têm uma visão alternativa a esse mundo que aí está, capitalista e de extrema indução ao consumo. A propaganda incute na cabeça do cara a idéia de que ele não será feliz se não tiver um carro novo. Optamos pela felicidade real, pela capacidade de saber admirar a beleza de um pôr do sol. Só trabalhar e ganhar dinheiro não é o caminho. Às vezes, aquele empresário que trabalha como louco e tem muito dinheiro nem tem tempo para aproveitá-lo.
CIDADÃO: Ele trabalha o ano inteiro pra fazer em 15 dias o que você faz o ano todo...(risos).  
MATHEUS: É. O que adianta ter uma casa em Angra se você só vai lá uma semana por ano? Eu não queria esperar o final da minha vida para aproveitá-la. Cada pessoa tem lá os seus valores. Uns querem carro do ano, outros não. Felizmente, achei uma pessoa que pensa como eu, e nós estamos indo em busca daquilo que realmente queremos da nossa vida – vivenciar outras culturas, sabores, cheiros. Isso só é possível viajando.
CIDADÃO: Conte uma experiência internacional inesquecível.
MATHEUS: A Turquia é muito legal. Pela história – lá antigamente era a Grécia, e por razões políticas deixou de ser; pelo mar Mediterrâneo, de um azul muito forte; pela cultura; que é um barato, tem aquela coisa de islamismo, mas sem muito radicalismo, as mulheres votam e tal. A língua deles não é mais escrita em hebraico, e sim pelo alfabeto ocidental. É uma geléia geral, ao mesmo tempo em que as mulheres usam burca, você vê elementos da cultura ocidental.
CIDADÃO: Essa “ocidentalização” do Oriente é mal recebida pelos ortodoxos?
MATHEUS: Eles têm um preconceito muito grande justamente porque o Ocidente prega isso: consumo. “Compre e melhore seu universo particular”. Eles não aceitam esse conceito de não se pensar no todo. Nesses festivais, há um pensamento global, que envolve comunidades. Combatemos essa idéia de que “você não será feliz se não comprar”. Na Índia, as pessoas são pobres, e nem por isso roubam as máquinas fotográficas ou filmadoras dos turistas. Elas aceitam a condição em que nasceram, e nunca irão cobiçar aquilo que você tem. Isso é um choque muito grande para brasileiros, por exemplo, que nem podem deixar o celular aparecendo nas grandes cidades do Brasil. É uma diferença cultural enorme.
CIDADÃO: Você comprou esse barco no Brasil?    
MATHEUS: Nós tivemos sorte de encontrá-lo aqui no Brasil. Existe muita burocracia para barcos estrangeiros permanecerem no país, por causa do visto, tanto é que tivemos que antecipar a viagem, porque o visto do barco estava vencendo. É muito mais viável comprar um barco com nacionalidade estrangeira. A idéia durou dois anos para ser totalmente amadurecida, pois isso é um projeto de vida. Nós tivemos que fazer um estudo em cima do nosso orçamento, precisávamos comprar um barco que oferecesse a estrutura para morar dentro com conforto e segurança e ele tinha que caber no nosso orçamento.
CIDADÃO: Na primeira viagem, rumo à Guiana Francesa, quanto tempo vocês ficaram no mar?
MATHEUS: Nós ficamos no mar durante 14 dias. Não temos equipamentos de dessanilização da água, por isso temos que levar o suficiente para beber e para a higiene. Foi uma experiência excepcional essa primeira viagem, em direção à Guiana. O maior desafio que você tem que lidar é com o seu consciente: aceitar que está numa “casquinha de noz” flutuando no mar imenso, sujeito a qualquer intempérie, encontros com baleias, tubarões. Só que você é quem estabelece os desafios, são riscos calculados. A navegação é milimetricamente planejada nas cartas náuticas, a previsão do tempo hoje é muito precisa. Se, por exemplo, você quer evitar o encontro com uma tempestade em alto mar, você simplesmente espera dois ou três dias para sair do porto. O tempo não existe num barco à vela. Quem dita a duração da viagem é a natureza. O “Marleesh” tem 35 pés. Nossa alimentação é à base de massas e sopas. Normalmente, levamos 300 litros de água para higiene e 100 litros de água mineral.
CIDADÃO: Em 1984, o Amir Klink atravessou o Atlântico a remo. O que você pensa dele?
MATHEUS: É um ícone, uma referência que nos estimulou muito. Amir é um revolucionário. A literatura sobre vela no Brasil é muito escassa, não é como na França ou Inglaterra. As referências no Brasil são a família Schurmann e o Amir, que é um desbravador. Um aventureiro moderno, que se impõem desafios que ele vence com uma logística fantástica, uma preparação impecável. Seu sucesso se deve principalmente ao planejamento, ele é mestre nessa arte.