Psiquiatra prega o acesso à saúde mental para todos

20 de Agosto de 2025

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Psiquiatra prega o acesso à saúde mental para todos
Ninguém nega o grande avanço da área da saúde pública no Brasil, no último meio século. Por outro lado, fica evidente que ainda há um longo caminho a trilhar. É o que pensa a médica psiquiatra Rosylene Machado Pelegrini, que trabalha atualmente em Fernandópolis, onde também exerce a função de professora do curso de Medicina da Unicastelo. Formada pela Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, Rosylene freqüentou cursos de especialização em Psiquiatria Geral e da Infância e do Adolescente, também em Ribeirão. Parte da especialização em infância e juventude aconteceu na USP de São Paulo. Por onze anos, foi assistente de docente na área de Psiquiatria. Participou da montagem de vários programas da saúde mental em cidades como Franca, Jaboticabal e Ribeirão Preto. Rosylene é “filha” do Movimento Anti-asilamento dos doentes mentais, iniciado em Bauru em 1987. Ela sempre tem em mente duas datas emblemáticas: o 18 de maio, que é considerado o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, e o 7 de outubro, que é o Dia da Saúde Mental. Sem qualquer tipo de afetação, a médica se vê apenas como uma pequena peça de uma grande engrenagem que ela espera ver funcionando cada vez melhor.        
CIDADÃO: Quais são as diferenças conceituais de psiquiatria, psicanálise e psicoterapia?
ROSYLENE: A psiquiatria é uma especialização médica, tem caráter científico e estuda as patologias que envolvem os transtornos mentais, a função psíquica. A psicologia estuda o comportamento humano, a psique. Tem várias especialidades, canalizadas para as áreas de treinamento de pessoal, psicologia escolar, psicologia industrial, etc. Há também a parte clínica, em que o psicólogo faz tratamentos preventivos e terapêuticos dos transtornos mentais – mas não só para isso. A psicanálise é uma técnica desenvolvida pelo neurologista Sigmund Freud. Ele e Jean-Martin Charcot, que é considerado o pai da neurologia, durante estudo, descobriram que alguns pacientes não tinham lesões orgânicas, mas apresentavam sintomas parecidos com lesões orgânicas. Esses pacientes apresentaram melhora a partir de um tratamento à base de conversas, com uma técnica específica. Assim foi se desenvolvendo a psicanálise, que é uma técnica de abordagem terapêutica, que não serve só para tratamento de doenças: é um processo para a pessoa se conhecer, descobrir como funciona e como melhor se adaptar e usar suas capacidades. É como um catalisador, usado para acelerar a reação química: a psicanálise e a psicoterapia funcionam como o catalisador que você usa para acelerar seu desenvolvimento humano, sua maturidade.
CIDADÃO: Quando você era estudante de Medicina, participou do Dia Nacional da Luta Antimanicomial, que marcou a sua geração e sua carreira profissional. Você mantém essa postura em relação ao asilamento dos doentes mentais?
ROSYLENE: Ah, sim. Quando estava no quarto ano de Medicina, tínhamos Psiquiatria I e II. Nesses cursos, nós visitávamos hospitais. Naquela época, o padrão era manter pacientes morando no hospital psiquiátrico. Havia um hospital grande em Ribeirão Preto: o Santa Tereza, o segundo no estado depois do Juqueri, de Franco da Rocha. Era enorme, uma fazenda, com muitos pacientes. Só que a maioria era de moradores, internados há 30 anos. Alguns nem sabiam o paradeiro dos parentes. Antigamente, simplesmente abandonavam os pacientes dentro do hospital. Virava um “orfanato” de doentes mentais. Muitos deles já reuniam condições de ter vida social. Isso se chama asilamento do paciente, tirava o caráter de hospital do lugar. Nessa época, conversávamos muito sobre o problema. Todos usavam roupas iguais, perdiam a individualidade, um direito de cidadania. Esse movimento para acabar com a história de paciente ser morador de hospital era uma maneira de resgatar a cidadania do paciente. Procuramos contatar familiares, recuperar relacionamentos. O paciente em alta do hospital pode votar, por exemplo. Dentro do hospital, ele fica numa condição de invalidez mental. Nosso objetivo era que ficassem internados só os casos em que era notória a necessidade de internação. O movimento culminou com a obtenção da criação do plantão psiquiátrico em Ribeirão Preto. Antes, os plantonistas não eram psiquiatras. Na verdade, esse movimento começou com os trabalhadores da saúde mental e sempre teve como objetivo o resgate da qualidade de vida, da dignidade dos pacientes. Só para que você tenha uma idéia, os banhos antigamente eram coletivos, dados com jatos de mangueira! Um paciente ficava sem roupa e ninguém ligava – mesmo se estivesse frio. Pareciam bichos. O tratamento tirava a condição civilizada da pessoa. O Juqueri, em março de 64, tinha 2 mil pacientes; em maio do mesmo ano, tinha 10 mil, porque a ditadura resolveu “depositar” lá um enorme contingente de pacientes.
CIDADÃO: Você está falando de um período sombrio da história recente do país, que inclusive gerou situações aberrantes como aquela observada no filme “Bicho de 7 Cabeças”, baseado num fato real, onde o pai interna o filho adolescente num hospício porque o surpreendeu com um cigarro de maconha. Que influência esse tipo de desmando teve na postura, na atitude desses profissionais de saúde da sua geração?
ROSYLENE: Virou uma briga entre a psiquiatria antiga e a psiquiatria moderna. Falava-se: “Aquele lá é do ‘montinho de remédio’!”, referindo-se ao hábito dos profissionais da velha escola de prescreverem muitos medicamentos. Os adeptos da psiquiatria moderna preferem adotar a monoterapia. Um professor nos dizia que a tendência é dar uma medicação só, sem especificar o diagnóstico. Antigamente se dava remédio a torto e a direito, a ponto de chegar ao paroxismo de médicos que não eram psiquiatras, e até enfermeiros e atendentes, passarem a ministrar medicamentos. Parecia presídio. Tive formação com psiquiatras sérios, como o Oswaldo Milton Dante Di Loreto, cujo primeiro trabalho foi no Juqueri, na época daqueles 10 mil pacientes a que me referi. Ele conta que, como não havia alojamentos para todos, os pacientes dormiam de dois em dois nos degraus das escadarias do prédio, para subir de um andar para o outro era preciso acordar os pacientes. Isso é um horror, e receber essas informações contribuiu para que eu tivesse uma formação mais humanizada. Vejo a pessoa como um todo indivisível, não vejo “pedaços” de pacientes, como costuma acontecer nas especialidades. O fato de ter trabalhado na Infância e Adolescência me despertou a noção de observar o paciente inserido na família, não essa coisa isolada que alguns confundem com a teoria psicanalítica. Às vezes, há distorção da teoria e das técnicas. O psiquiatra infantil é mais invasivo no sentido de que ele chama a família para conversar. O grupo do doutor Di Loreto trouxe essa visão mais humanista, mais integrada da pessoa.
CIDADÃO: Outra “bandeira” que você levanta é a democratização dos tratamentos, no sentido de que se criem mecanismos governamentais que permitam o acesso aos tratamentos psiquiátricos a todas as camadas sociais da população. É possível fazer uma medicina socialista num país capitalista?                   
ROSYLENE: A saúde mental é a prova de que o SUS funciona. Porém, isso só acontece quando há agentes públicos que efetivamente põem em prática aquilo que é possível fazer. Vou dar um exemplo. Tornei-me psiquiatra logo que acabei minha especialização em Ribeirão Preto, prestei um concurso do estado e passei a ser auditora. Essa interlocutoria comandava os coordenadores de saúde mental da região de Ribeirão. Como se sabe, é preconizada a existência de um psiquiatra para cada 50 mil habitantes. O distrito que eu atendia em Ribeirão tinha 120 mil habitantes, e éramos dois profissionais. Tínhamos também duas psicólogas. Pois conseguimos, com muito esforço, manter as regras de 80 horas semanais de psicóloga, 40 horas de psiquiatras. Essas regras não são mais seguidas. Então, o que acontece é que há normas, padrões estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde que são adotados pelo Brasil, pelo menos no papel. Não se trata de democratização da saúde, mas a preservação, o respeito a um direito que é de todos. A própria Constituição assim dispõe. Basta fazer cumprir a lei.