Médico pioneiro fala da primeira cirurgia cardíaca

20 de Agosto de 2025

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Médico pioneiro fala da primeira cirurgia cardíaca
Há quase 30 anos, um estudante de Cassilândia (MS) costumava passar por Fernandópolis de mochila nas costas, pedindo carona. O rapaz cursava Medicina na Santa Casa de Vitória (ES). Mais tarde, ele se tornou discípulo do festejado médico Domingo Braile, de São José do Rio Preto. João Carlos Leal, o jovem da mochila, fez residência médica na Beneficência Portuguesa de Rio Preto, além de Mestrado e Doutorado pela Unicamp. É membro do Conselho Deliberativo da Sociedade Paulista de Cirurgia Cardiovascular e do Decem (cirurgia endovascular). No dia 12 de julho, Leal realizou uma cirurgia cardíaca – a peito aberto – na Santa Casa de Misericórdia de Fernandópolis, um feito que entrará para os anais da cidade. Na entrevista, Leal explica a importância dessa conquista, que beneficia toda a região.    
 CIDADÃO: Que tipo de parceria foi feita para a realização da primeira cirurgia cardíaca em Fernandópolis?
LEAL: Acertamos um programa de cooperação entre a Santa Casa de Fernandópolis e o grupo de cirurgia cardíaca que trabalha em São José do Rio Preto, na Beneficência Portuguesa. Então, estendemos esse grupo, que já tem um trabalho a longo prazo – tudo baseado no aprendizado que tivemos com o professor Domingo Braile, com quem eu, particularmente, comecei a trabalhar há quase 23 anos – e toda essa experiência, nós estamos trazendo para a Santa Casa de Fernandópolis. Hoje, eu poderia dizer que foi lançada a pedra fundamental dessa parceria.
CIDADÃO: O que isso representa para a Santa Casa e para Fernandópolis?
LEAL: Não é só para Fernandópolis. A cirurgia cardíaca é hoje plenamente viável no Brasil. Só perdemos para países como os EUA. Então, se pensamos dessa forma em nível de Brasil, para Fernandópolis é a mesma coisa. É um marcador de viabilidade, uma área de atuação que agrega emprego, direta ou indiretamente, isso porque o hospital tem que se projetar, fazer up grade, atualizar-se. Essa atualização, seja na fisioterapia, na enfermagem, no ecocardiograma, que é uma área de sub-especialização da cardiologia, mais pessoas são inseridas no contexto – sem falar que a prática desse tipo de cirurgia agrega ao hospital mais confiabilidade, não por ser eu a realizá-la, mas qualquer cirurgião cardiovascular. Se você tem cirurgia cardíaca num hospital, com certeza agrega confiança para a instituição, trazendo uma drenagem maior de pacientes da região.
CIDADÃO: O Sr. é da equipe do Dr. Braile, que na década de 60 deixou uma posição de destaque na equipe do Dr. Zerbini, no HC de São Paulo, para vir revolucionar a medicina em Rio Preto. O jornalista José Hamilton Ribeiro ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo em 1977, com uma reportagem sobre as cirurgias cardíacas realizadas em Rio Preto, algo que na época era considerado assombroso. Hoje, em comparação àquela época, a cirurgia cardíaca pode ser considerada quase corriqueira?
LEAL: Não. Acho que o que se pode dizer é que Fernandópolis avançou. A cirurgia cardíaca efetivamente se tornou mais atualizada com as tecnologias que vêm surgindo – novos exames, novos equipamentos, novos materiais cirúrgicos. Tudo isso possibilita hoje novos serviços massivos em cidades como Fernandópolis. Não que seja um procedimento corriqueiro: se não tivermos uma coisa que se chama heart team – um time do coração – pode haver cirurgia, pode haver o procedimento, mas não sei se haverá sucesso. Isso é muito diferente. Digamos que haja 20 pacientes. Muito bem, mas qual é o índice de mortalidade? Então, não é uma coisa corriqueira; sem um time alinhado, bem equipado e disposto a trabalhar de maneira uniforme, não se obterão os resultados esperados. Em 1970, o Dr. Braile foi o pioneiro da cirurgia cardíaca no interior porque “quebrou” a cirurgia do eixo Rio - São Paulo. Se não me engano, a primeira cirurgia em Rio Preto aconteceu em 1965. Em 1970, eles já contabilizavam mais de 100 cirurgias em Rio Preto. Eu me lembro do Dr. Braile contando que, quando saiu do Incor, do HC, o professor Zerbini lhe disse: “Braile, o quê você vai fazer em Rio Preto, o ponto final da Cometa?!” Naquele tempo, já havia a Medicina da USP em Ribeirão Preto, mas ele optou por voltar para a sua região de origem. Começou a fazer cirurgias no Santa Helena, depois na Santa Casa e depois foi parar na Beneficência Portuguesa, que virou um hospital de grande porte e hospital-referência. O que quero dizer com tudo isso é que o Dr. Braile acreditou que a “São José dos Pretos, ponto final da Cometa”, como ele brincava, pudesse ter cirurgia cardíaca nos meados da década de 60. Podemos falar hoje que o sonho se concretizou em Fernandópolis. Obviamente não com as mesmas dificuldades da década de 60 ou início dos 70. Sei que sou suspeito para falar do Dr. Braile, meu mestre, companheiro de muitas cirurgias, e grande incentivador. Mas o fato é que ele acreditou no seu projeto, mesmo diante de tantas dificuldades. Veja, naquela época não existiam os oxigenadores que existem hoje! Hoje, se você chamar o representante de uma indústria de São Paulo da nossa área, em 15 minutos ele pega uma rodovia de pista dupla e chega a Rio Preto em poucas horas. No final de 2012, chegará a Fernandópolis também por pista dupla! Antigamente, era muito diferente, desde a questão dos transportes até os equipamentos, tudo era mais precário. Quando se terminava uma cirurgia cardíaca, tinha-se que lavar os discos. Ninguém saía para tomar café ou almoçar: todos ficavam lavando os discos para a próxima cirurgia. Temos hoje monitores de última geração, respiradores artificiais que atendem ao doente de forma mais tranqüila. Mas, mesmo sem essas dificuldades, acredito que foi um sonho realizado e uma conquista enorme de Fernandópolis, pela primeira cirurgia cardíaca praticada. Vou contar um pequeno segredo: o Dr. Braile viria hoje a Fernandópolis, eu o convidei e ele aceitou com entusiasmo. Só não veio porque surgiu uma reunião de última hora na Secretaria Estadual de Saúde e ele precisou viajar para a capital.
CIDADÃO: O paciente operado hoje passou por qual tipo de cirurgia?
LEAL: O paciente é um adulto jovem, do sexo masculino. A cirurgia se chama tecnicamente fechamento da comunicação interatrial. É uma doença congênita – o indivíduo já nasce com ela. Na maioria das vezes, passa toda a adolescência sem perceber o problema, porque é assintomático. Quando se torna um adulto jovem, aí começam a aparecer sintomas. Feito o check-up, é diagnosticado o problema. Não é uma cirurgia de grande porte dentro da cirurgia cardíaca. É uma cirurgia curativa e foi muito bem, o paciente já está acordando (NR: a entrevista foi feita poucas horas após o procedimento). Esse é um dos momentos que dão alegria ao cirurgião: ver que o paciente está acordando, passando pela fase anestésica sem seqüelas neurológicas. A cirurgia foi muito boa, esse fechamento da comunicação é feito com patch, fabricado a partir de pericárdio bovino. Aliás, todas as nossas cirurgias são genuinamente brasileiras, no sentido de que todos os materiais utilizados são nacionais. Falo isso porque o patch, por exemplo, é produzido em São José do Rio Preto.
CIDADÃO: Quando surgiu essa parceria com a Santa Casa de Fernandópolis?
LEAL: Essa parceria começou através de alguns amigos de longa data, como o Valtinho (Valter Luis Pereira Junior, ecodoplercardiografista). Aliás, tenho aqui um colega de faculdade: é o João Betiol, que se formou dois anos antes de mim. Bem, o Valter sempre esteve empenhado em montar um serviço de cirurgia cardíaca, para dar um estímulo maior à cardiologia em Fernandópolis. Ele, o Luiz Antonio Gubolino, o grupo, enfim, entendeu que estava no momento da Santa Casa dar um passo à frente montando um serviço de cirurgia cardiovascular, juntamente com o serviço de hemodinâmica. Fizemos contato e me convidaram para visitar esta Santa Casa e opinar sobre o projeto. A receptividade que encontrei aqui me estimulou, já vim com a vontade de montar o serviço. Conversamos com a diretoria e estudamos formas de captação de recursos, discutimos o que poderia ser alterado na parte estrutural do hospital. Eu dizia ao Pedro (Cirino, administrador): “Pedro, vamos montar isso de forma lenta, para começar as cirurgias com a estrutura montada dentro dos padrões necessários”. Ao longo desses quase dois anos, sempre trocávamos informações, corríamos atrás de dinheiro. Até que marcamos essa data, 12 de julho, para fazer a primeira cirurgia. Na verdade, esse sonho se concretizou e estou muito feliz. É um orgulho, um privilégio. Sou de família de Cassilândia, uma parte é de Paranaíba. Na minha vida toda, sempre passei na porta de Fernandópolis. Primeiro com mochila nas costas, pedindo carona; depois, já formado; e agora, não apenas passo, mas entro para atuar em Fernandópolis. Nunca poderia imaginar que fosse operar aqui, ou que fosse liderar um grupo de cirurgia cardíaca em São José do Rio Preto. E não posso deixar de homenagear o Dr. Braile, que tem uma parcela importante nisso tudo: ensinamentos, transparência e honestidade. Sinceramente, hoje estou emocionado, sentindo do fundo do coração a nostalgia de quando era menino e, nas viagens, passava com minha mãe e meu falecido pai. O velho dizia: “Vamos parar para tomar um café no posto de Fernandópolis”. Nunca poderia imaginar que, anos depois, estaria aqui, na Santa Casa, comemorando a primeira cirurgia cardíaca.
CIDADÃO: O Sr. se sente pioneiro?
LEAL: Não passa isso pela minha cabeça. Eu me sinto feliz, como se tivesse cumprido uma missão. Você já nasce médico. A faculdade só lapida. Partindo desse raciocínio, é mesmo uma missão. Não é pioneirismo, e sim o início de uma etapa importante para a medicina local, para a cidade e a região.