Abdala: “Insuficiência renal precisa de ação preventiva”

20 de Agosto de 2025

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Abdala: “Insuficiência renal precisa de ação preventiva”
O médico fernandopolense Nilson Abdala é um verdadeiro operário da Nefrologia. Diariamente, ele pode ser visto pelos corredores do setor de Hemodiálise da Santa Casa de Misericórdia, labutando como um mouro, na guerra santa contra os males do rim. Chefe da Nefrologia do hospital, Abdala, ao lado do colega Evaldo Garcia Terra (diretor técnico da unidade de diálise) conseguiu montar uma estrutura de primeiro mundo na Santa Casa. Isso, porém, não o satisfaz: o médico sonha com uma política governamental de saúde que aposte as fichas na prevenção, o que, no seu entender, traria resultados bem mais eficazes. Leia a entrevista e entenda porque esse médico – formado pela Escola Paulista de Medicina da Universidade de São Paulo, com 30 anos de profissão, sendo 26 em Fernandópolis – sustenta essa tese.

CIDADÃO: Qual é a estrutura existente hoje na Santa Casa de Fernandópolis, relativamente à diálise?
ABDALA: Em relação à insuficiência renal crônica e ao tratamento dialítico, que precisamos oferecer a esses pacientes, a Santa Casa possui toda a infra-estrutura humana, técnica, de equipamentos e estrutura física para oferecer um atendimento de qualidade e com segurança para eles. Somos hoje uma das maiores unidades de diálise do interior do estado de São Paulo. Contamos com aproximadamente 50 máquinas de diálise em operação e oferecemos também a modalidade de terapia dialítica via peritonial. O tratamento dialítico é dividido em duas esferas: a hemodiálise, onde a limpeza do sangue é feita através da máquina, e a diálise peritonial, onde a depuração é feita por uma membrana abdominal. Esta é feita em casa, e pode ser automática (através de uma máquina cicladora que o doente liga à noite, e a máquina faz as trocas até a manhã seguinte, quando é desligada); e a diálise peritonial ambulatorial contínua, onde as trocas são feitas manualmente de seis em seis horas ou de oito em oito, de acordo com a necessidade do paciente. Existe uma terceira terapia que é a diálise peritonial intermitente, para aqueles raros pacientes que não têm condições de fazer o tratamento em casa, e não tem acesso vascular para a hemodiálise. Aí, é feita uma diálise intermitente, no hospital, durante 24 horas. Mas esses são casos extremos.
CIDADÃO: Esses procedimentos são muito onerosos?
ABDALA: O tratamento dialítico é extremamente caro. O governo federal gasta hoje, entre diálises e transplantes, mais de R$ 1,5 bilhão ao ano. A diálise peritonial custa mais caro do que a hemodiálise, mas hoje, 90% dos pacientes fazem através da hemodiálise, e 10% a diálise peritonial. É que essa última é oferecida aos pacientes que não têm condições de acesso vascular, isto é, não têm vasos razoáveis para a implantação de uma fístula artério-venosa que dê fluxo adequado para o funcionamento da máquina. Esses pacientes normalmente são os diabéticos, que têm vasos esclerosados, e as crianças, devido ao baixo peso. Então, temos 100 mil pacientes fazendo diálise hoje no Brasil.
CIDADÃO: O que leva à existência de uma significativa percentagem de brasileiros com problemas de rim? Qual é a causa?
ABDALA: Essa pergunta é importante, porque a população precisa tomar conhecimento de que a insuficiência renal crônica é, junto com a obesidade, a epidemia do século. É o problema mundial de saúde do século 21. A insuficiência renal crônica não é uma doença de per si; ao contrário, ela é conseqüência de uma série de outras patologias que levam, como conseqüência final, à falência da função renal. E que doenças são essas? Em primeiro lugar, no mundo, o diabetes. 8% dos brasileiros são portadores do gene pré-diabetes. Em segundo lugar, a hipertensão: no Brasil e no mundo, a incidência de hipertensão está numa faixa de 16 a 20%; se você somar só esses dois valores, teremos no Brasil, arredondando-se a população para 200 milhões, 60 milhões de brasileiros com propensão às doenças que levam à insuficiência renal. E em muitos pacientes, coexistem o diabetes e a hipertensão, isso é comum. Além disso, há as nefrites crônicas, uma doença auto-imune, em que o indivíduo começa a desenvolver anticorpos contra as estruturas do seu próprio rim e ao longo de 20, 25 anos, acaba lesando o rim. Há também a nefrite intersticial crônica, provocada pelo uso abusivo de antiinflamatórios. Infelizmente, a população tem o hábito da automedicação. Basta aparecer uma dor articular que o indivíduo toma cetoprofeno, diclofenaco...Enfim, existe uma plêiade de situações contribuindo para que o individuo sofra agressões à sua função renal. Então, temos que esclarecer a população, divulgar o conhecimento de que a insuficiência renal crônica é amplamente prevalente na população brasileira e que é necessário conhecer os mecanismos que levam a isso, para que possa ser feita uma prevenção adequada.
CIDADÃO: A prevenção implica, então, a prevenção de males como diabetes e hipertensão arterial, é isso?
ABDALA: Correto. A prevenção da insuficiência renal crônica pode ser dividida em três estágios: prevenção primária, secundária e terciária. Primeiro, é preciso identificar a população de risco. São os portadores dessas doenças potencialmente lesivas à função renal, como o diabetes, a hipertensão e glomeropatias. Os idosos também formam um grupo importante na perda da função renal porque, depois da quarta década de vida, perde-se 6% da função renal a cada dez anos de vida. É conseqüência do envelhecimento. Ora, com a longevidade cada vez maior da população, hoje há indivíduos com 80 anos que já perderam 24% da função renal sem terem quaisquer dessas doenças degenerativas. Então, agora é comum ver octogenários iniciando diálise. Temos um paciente de 92 anos. Já há a nefrogeriatria – é a nossa especialidade voltada para o idoso. Hoje existem 100 mil pacientes fazendo diálise no Brasil, mas a Sociedade Brasileira de Nefrologia estima que existam 2 milhões de indivíduos no país com algum grau de insuficiência renal. Ela se divide em cinco estágios. Vai do primeiro estágio, quando o indivíduo tem uma função renal normal, porém com alguma lesão renal, até o quinto, quando o indivíduo perdeu a função renal e precisa de diálise. Os estágios intermediários têm dois milhões de pessoas que estão doentes e não sabem. Essas pessoas estão caminhando para uma situação de, daqui a alguns anos, precisarem da diálise – e eles nem sabem disso e precisam ser conscientizados desse perigo.
CIDADÃO: O que o leigo pode fazer para “desconfiar” que tem algum problema renal?
ABDALA: Esse é um grande problema, porque a insuficiência renal crônica é assintomática. Não há dor, e o indivíduo pode conviver durante anos com uma situação estressante e injuriante para seu rim, sem saber disso. A conduta mais correta hoje – conduta inclusive divulgada exaustivamente no dia 1º de março, consagrado como o Dia Mundial do Rim – para que sejam feitos exames para apurar o risco de uma injúria renal. Atualmente, os exames dão destaque para as doenças cardiovasculares e os acidentes vasculares, mas não existe uma preocupação equivalente com a questão renal. Seria importante fazer periodicamente um exame de creatinina – trata-se de um exame de sangue, muito simples. Com ele e um exame de urina tipo 1, é possível para o nefrologista detectar se o rim está perfeito, ou partir para uma investigação mais profunda que afira em que nível está essa insuficiência renal.
CIDADÃO: Quanto um departamento como este é oneroso para o hospital?
ABDALA: O tratamento dialítico é inteiramente custeado pelo SUS. O governo, como já disse, gasta R$ 1,5 bilhão por ano com esses tratamentos mais os transplantes. Isso porque só trata 100 mil pessoas. Já pensou se, daqui a alguns anos, tivermos 350 mil pacientes crônicos, como ocorre nos EUA? Seria uma catástrofe para as finanças do país – daí a importância da prevenção. O governo brasileiro remunera esse tratamento, que é um procedimento de alto custo e complexidade; só que, para montar uma estrutura adequada de atendimento aos pacientes, isso é muito oneroso. Precisa-se de profissionais especializados e uma estrutura física de equipamentos e máquinas que são extremamente caros. Há 22 anos, fizemos uma parceria com a Santa Casa, que não tinha condições de adquirir o equipamento. Então, eu e o doutor Evandro (Garcia Terra) fizemos a parceria e conseguimos montar esse serviço – e isso a gente diz com orgulho – que é um dos melhores do estado, com alta taxa de transplantes e de sobrevida dos pacientes.
CIDADÃO: Como foi o episódio em que a unidade de hemodiálise de Fernandópolis “socorreu” a de Votuporanga?
ABDALA: Veja como o nosso é um serviço melindroso, que envolve múltiplas facetas. Tempos atrás, o serviço de diálise de Votuporanga, que é muito bom também, dirigido pelas nossas colegas doutoras Paula, Regina e Neide, teve problemas com a água do tratamento. Houve contaminação no serviço de tratamento de água e a Santa Casa de Votuporanga teve que interromper o serviço de diálise para refazer o sistema. Isso levou uns 60, 90 dias, e o paciente, você sabe, não pode ficar sem o tratamento. Os pacientes foram divididos: metade veio para cá e metade foi para Rio Preto. Nós nos esforçamos para, nessa emergência, socorrer os pacientes de Votuporanga. Se não os atendêssemos, eles teriam morrido. Eram 150 pacientes, dos quais 75 vieram para Fernandópolis. Quando o serviço em Votuporanga foi restabelecido, graças a Deus todos se salvaram. Ficamos orgulhosos de ter conseguido, emergencialmente, aumentar em 50% nosso atendimento por um período de quase três meses. Para isso, tivemos que instituir três turnos de serviço, trabalhando desde o clarear do dia até as 22h. O pessoal de Votuporanga ficou muito grato, o prefeito agradeceu publicamente a ação dos fernandopolenses.
CIDADÃO: O alerta que você faz é para que a população se conscientize da importância da prevenção, também na questão da insuficiência renal?
ABDALA: Exatamente. Infelizmente, o que se faz no Brasil é a medicina curativa. Precisamos de uma política de medicina preventiva.