Antonio, o anjo da guarda dos doentes

20 de Agosto de 2025

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Antonio, o anjo da guarda dos doentes
Foi só no meio da entrevista que reconheci em Antonio Carlos Gonçalves o moleque magrelo que trabalhava anos atrás na Drogaceni, a farmácia do Eurico. Aliás, Antonio tem um carinho especial pelo Eurico, “que me puxava as orelhas sempre na hora certa, e muito me ajudou na vida”. Antonio começou a trabalhar muito cedo. Aos 11 anos, entrou para a Guarda Mirim e foi encaminhado à dita farmácia. Tomou gosto pelo mundo dos remédios e tratamentos. Hoje, aos 34 anos e casado com Karina Garcia da Costa, ele ostenta o diploma de enfermeiro pela FEF, obtido em 2007 (antes, em 1999, concluíra o curso técnico de enfermagem) e o título de especialista em Oncologia emitido pela Fundação Pio XII, de Barretos. Nasceu por aqui mesmo, e encontrou na AVCC o porto para as suas aspirações profissionais. Como você verá na entrevista, ele assumiu a delicada missão de dar assistência domiciliar aos pacientes de câncer ditos terminais – ou que recebem um “tratamento paliativo”, outra expressão usada no meio hospitalar. Antonio, assim como alguns colegas e estudantes de Medicina que o acompanham nesse trabalho, descobriu que o mais importante mesmo é a mão amiga, a palavra que conforta. Seu maior orgulho, talvez, seja enxergar em estudantes a vocação para anjo protetor desses doentes – vocação que ele desenvolveu como ninguém (Vic Renesto)

CIDADÃO: Por que você decidiu ser enfermeiro?
ANTONIO: Na verdade, tinha muita curiosidade e fascínio pela profissão. Comecei a trabalhar numa farmácia da cidade como guarda mirim. Tinha interesse específico pela área, mas trabalhando em farmácia eu me sentia meio limitado para ajudar as pessoas como gostaria. Na época, tive o incentivo do Sérgio (Felix do Nascimento, diretor da AVCC) que me sugeriu fazer o curso de técnico e depois me aperfeiçoar na profissão. Foi o que fiz. Iniciei como técnico em enfermagem, e fui me aprofundado. Ficava meio período na Santa Casa e meio período como voluntário na AVCC.
CIDADÃO: Nessa época, qual foi a sua grande descoberta?
ANTONIO: Descobri o quanto era importante, nessa área, a atuação de gente que dedicasse atenção aos pacientes. A notícia do câncer, por si só, já assusta muito. Senti que havia a necessidade de um trabalho específico nesse sentido. Enfim, era preciso humanizar o atendimento, porque os pacientes demonstram uma carência típica do portador de câncer. É possível perceber que os pacientes ficam fragilizados, assim como seus parentes e amigos íntimos. Não adianta imaginar que o paciente continuará com a vida de sempre, porque na realidade isso não acontece. Ele para de trabalhar, muda os hábitos sociais, não vai mais ao clube. Costumo dizer que o paciente começa a não ter mais desejos. Os outros é que passam a “desejar” por ele. A esposa compra aquilo que julga que vai ficar bom para ele, muda o quarto, tira o box do banheiro – mas nunca perguntam a ele se gostaria ou não disso. Aquela situação me incomodava, e comecei a lutar para que o paciente consiga ser útil, mesmo com a doença. Derivei para esse lado, e a AVCC me deu essa abertura. Tudo o que eu tenho hoje, profissionalmente falando, tem por trás muita gente: médicos, voluntários – uma equipe por trás de mim. Claro que o paciente faz a primeira associação com a minha pessoa, porque sou eu quem tem o primeiro contato. Às vezes, passo anos com uma família, na assistência a um paciente. Em outros casos, depois de quinze dias o paciente acaba falecendo. Mas eu tenho, por exemplo, um paciente há seis anos, na condição chamada de “paciente paliativo”. Isso joga por terra aquele conceito de que paciente terminal morre logo. Morre se não tiver cuidados. Se não tiver uma equipe boa por trás dele. Outro tabu: “usou morfina, vai morrer”. Tenho um paciente que faz uso de morfina há quatro anos e está tendo uma vida ativa e normal dentro das possibilidades. Não vou dizer que ele parou de fumar ou beber porque sei que é um desejo dele, eu respeito, porque ele está fazendo o que lhe dá prazer. Não posso tirar isso do paciente.
CIDADÃO: Isso de trabalhar sempre “no limite” – você caminha no fio da navalha, está sempre vendo a morte rondando os pacientes – não é estressante? Você não fica deprimido, ou perde o sono?
ANTONIO: Não, por incrível que pareça. E tem outra coisa: não me incomodo, absolutamente, se um paciente me liga no meio da noite, pedindo ajuda. Para mim, é uma satisfação atendê-lo. Não tem isso de final de semana, porque se ele me liga não é frescura, sei que ele está precisando. Já trabalhei em outros hospitais, onde muita gente – em alguns momentos, até eu mesmo – dizíamos: “Ah, isso é piti!”. Hoje, sei o quanto é intensa a dor dos pacientes de câncer. Com relação ao enfrentamento da morte, sei que é complicado para o paciente e para a família. Ninguém gosta de falar que a morte está muito próxima. Assim, evito me estressar porque sei a importância que terá essa calma no momento crucial. Às vezes, os pacientes ligam e já pedem desculpas, dizendo que não saberiam para quem ligar. Você percebe que havia uma necessidade. Por isso, faço de bom coração, vou lá. E penso assim: “Ainda bem que eu posso fazer por alguém”. E depois, não é uma ação de mão única. Eu percebo que as pessoas também fazem por mim, eu me torno uma pessoa realmente querida por elas. É bom ter seu trabalho reconhecido. Vou a 90% dos velórios dos meus pacientes, e sinto o quanto a família me recebe com carinho e gratidão.
CIDADÃO: Com o passar do tempo, esse carinho se mantém?
ANTONIO: Sim. Tenho pacientes que telefonam no meu aniversário, ou me dão um champanhe no Natal – estou falando de pacientes carentes, para quem a compra do champanhe foi onerosa. Fazem com o coração. Fico sensibilizado quando, depois de ter “perdido o vinculo” com a família – digo entre aspas porque se perdeu foi o contato, não o vínculo – os familiares me elogiam e demonstram carinho e consideração. A gratidão é uma coisa maravilhosa, uma verdadeira virtude.
CIDADÃO: O fato da sua mulher também ser enfermeira ajuda, no sentido da compreensão de que você tem que estar sempre disponível para atender aos pacientes?
ANTONIO: Com certeza ajuda muito, porque ela entende a necessidade. Em relacionamentos anteriores, eu percebi que ficava difícil para a namorada entender. Você está no meio de uma festa, o celular toca e eu tenho que ir embora...A Karina sempre entendeu, nunca me cobrou que a gente deveria viver para nós. Ela procura até incentivar. Para você fazer bem o seu trabalho, precisa estar bem. E estrutura familiar é muito importante.
CIDADÃO: Como é o seu trabalho com os estudantes de Medicina da Unicastelo?
ANTONIO: É principalmente a relação médico-paciente. Nossa cultura ainda impõe algumas barreiras entre um e outro. O próprio paciente tem receio de exteriorizar o que de fato está sentindo. Não consegue “passar” adequadamente o que está sentindo. Com as visitas que fazemos, esses futuros médicos vão desenvolvendo uma sensibilidade que ajuda nesse diálogo com o paciente, além de ganharem responsabilidade no trato com o doente e com a vida. Eles sabem que a profissão de médico é nobre. Não é que seja melhor do que as outras, mas a vida não tem como voltar. Então, é preciso errar o mínimo possível. Eu sempre faço questão de destacar a importância disso. E falo sem medo de errar que o nível atual dos nossos estudantes é muito bom. A faculdade melhora a cada ano, os próprios alunos cobram mais, fazendo com que a instituição invista sempre em melhores profissionais. Os alunos têm vindo com outra cara e outra cabeça. A mentalidade mudou para melhor. Vejo hoje a preocupação dos alunos não só de aprender como também de ajudar a família do paciente, dar o necessário suporte. E os pacientes ficam muito felizes, dizem que a simples visita lhes dá até uma sobrevida.