João Batista dos Reis é um velho conhecido dos fernandopolenses de mais de 50 anos. Afinal de contas, ele vive na cidade desde os dez dias de vida. Só que João era um homem ligado aos seguros, à rede bancária. Anos atrás, a vida dele deu uma guinada e ele se viu membro do Conselho Tutelar de Fernandópolis. A partir dali, seu universo mudou completamente. João mergulhou no complexo mundo do Estatuto da Criança e do Adolescente e aprendeu muito. Hoje, ele é um apaixonado pelo trabalho no Conselho e lamenta ter que deixá-lo, já que o ECA impede mais de uma recondução ao cargo. Nesta entrevista, o marido de Laura Lacerda dos Reis, com quem teve os filhos Gustavo, Veruska e Natalia, faz um balanço da experiência que viveu a partir de 2004.
CIDADÃO: Como foi que o Conselho Tutelar entrou na sua vida?
JOÃO: A vida traz surpresas. Tive uma longa trajetória trabalhando em bancos, com seguros, e houve uma época em que fui morar Brasília, fiquei por lá quase três anos. Nessa ocasião, tinha a pretensão de me fixar em Brasília, onde meu cunhado João Lacerda já está há muitos anos. Não deu certo, porque minha família toda trabalha em Fernandópolis, não havia como deslocar todo mundo. Acabei voltando, e como faço parte das casas espíritas de Fernandópolis, inclusive a da Brasilândia, me convidaram para ser candidato ao cargo de conselheiro tutelar. Isso foi em 2004. Eu não tinha uma noção completa do que era o Conselho. Acabei sendo eleito e minha vida deu uma guinada.
CIDADÃO: Por quê? O que aconteceu?
JOÃO: Minha vida mudou porque saí de um universo bancário para lidar com gente exposta à vulnerabilidade social, cheia de problemas. Percebi que a vida era bem diferente, tinha outras nuances. Mais tarde, fui convidado para ser coordenador do Caefa, antiga Guarda Mirim. Consegui conciliar o trabalho no Conselho com o Caefa. Infelizmente, meu ciclo no Conselho está chegando ao fim, pois já cumpri dois mandatos consecutivos. Se não fosse por essa imposição do ECA, certamente eu tentaria uma nova reeleição.
CIDADÃO: Nesses anos de militância no Conselho, certamente você identificou muitos problemas da criança e do adolescente. Qual é o x da questão, o problema crucial?
JOÃO: A surpresa que tive, ao ingressar no Conselho, foi justamente notar que as pequenas cidades têm os mesmos problemas da cidade grande. Na TV, a gente sempre vê as questões de São Paulo ou Rio de Janeiro. Drogas, delinqüência...De repente, me deparei com essas mesmas questões aqui em Fernandópolis! Mas o que mais conduz a essa situação é a falta de estrutura familiar. Se nós, a sociedade, não trabalharmos a estrutura familiar, não retomarmos os valores do nosso tempo, no quesito da moral, da ética, da conduta, do respeito, não sei onde vamos chegar. O jovem se mira no exemplo dos pais. Sem esse paradigma, ele fica sem rumo. Se o pai diz ao filho que o cigarro é prejudicial, mas o faz com o cigarro na mão, é evidente que não surtirá efeito. O mesmo acontece com a bebida, as drogas, a prostituição.
CIDADÃO: O Conselho trabalha com as conseqüências. Mas a quem compete atacar as causas dos problemas da criança e do adolescente?
JOÃO: Essa pergunta é fundamental. Nós, do Conselho, já encontramos as consequências instaladas e temos que lidar com o problema pontual. Entretanto, as causas têm que ser atacadas pela sociedade. Isso cabe a todos nós, ao governo, às instituições. O ECA diz que a responsabilidade sobre os filhos é primeiramente dos pais. Se estes não dão o acompanhamento devido aos filhos, isso passa a ser de responsabilidade do governo, dos poderes constituídos. Creio que o caminho para se consertar tudo isso é o da prevenção. A política social tem que funcionar. Em Fernandópolis, ainda há muito por fazer, mas estamos no bom caminho. Antes se trabalhava apenas a criança; agora, trabalha-se com a família. A principal função do Conselho Tutelar é o encaminhamento. As situações mais simples, que podem ser resolvidas no momento, nós resolvemos. Casos mais complexos exigem acompanhamento, através da rede social: CREAS, CRAS, Bem-Estar Social. A família é orientada de como proceder para solucionar o problema.
CIDADÃO: Não dá para discutir a questão do menor sem citar o nome do juiz Evandro Pelarin, com quem aparentemente vocês têm grande sintonia. Como tem sido o trabalho com o Dr. Pelarin?
JOÃO: Trabalhar com o Dr. Evandro Pelarin é uma satisfação. Além de ser um profissional de capacidade extraordinária, é um cidadão que tem um sentimento humano especial. Embora o maior contato seja profissional, os poucos momentos de conversa pessoal já me deram essa dimensão. Creio que ele tem toda a competência para encaminhar a questão da criança e do adolescente, nesta ou em qualquer outra comarca. Ele respira esse problema durante 24 horas. Em todo setor da vida, é preciso ter boa convivência. Nós somos parceiros da Vara da Infância e Juventude, da Polícia Militar e da Polícia Civil. Trabalhamos em perfeita sintonia.
CIDADÃO: Algumas das medidas adotadas pelo Dr. Pelarin geraram polêmica. Analise uma a uma: o toque de acolher, o toque escolar...
JOÃO: Na verdade, a questão do toque de recolher, ou de acolher, é muito simples. É dever de todo cidadão proteger toda criança ou adolescente em situação de risco. O que vem a ser isso? Penso assim: se um adolescente de 13, 14 anos ou mais, está na rua num horário tipo 3h da madrugada, ele está em situação de vulnerabilidade, porque corre os riscos de ser abordado por alguém que lhe ofereça drogas, bebidas, que o alicie para conduta inadequada. Ora, se ele está em situação de risco, e desacompanhado pelos responsáveis, compete ao Conselho evitar isso. Não dá para considerar normal uma quase criança perambulando de madrugada. Aí, você conduz o menor a sua casa, explica ao pai a situação, e este diz: Nossa, não sabia que ele estava na rua! Ora, como é que um pai vai dormir sem conferir se seus filhos estão em casa? Isso é a falta de conscientização de que falo. Paternidade não é só vestir e alimentar. Muitos problemas advêm de pais que se separam. Quando isso acontece, eles têm que entender que deixaram de ser um casal, mas não de ser pai ou de ser mãe. Tem muito pai separado que acha que, pagando a pensão, está tudo resolvido. Não é assim, tem que acompanhar e orientar. Se você apanha um menino de 13, 14 anos, embriagado na rua, de madrugada e já houve casos assim, um menino chegou a vomitar no Fórum você sente que alguma coisa precisa mudar. Temos que conhecer as pessoas que estão influenciando negativamente os menores. Outros problemas é a prostituição de menores. Elas se encontram em terrível situação de risco. E o pior é que muitas dessas meninas estão nessa situação porque, por mais terrível que seja, ali ela encontra alguma coisa que não encontra no lar. Claro, isso no seu entendimento. É a questão sócio-econômica. O mundo moderno impõe o consumo de produtos os mais variados, cria artificialmente aquela necessidade de ter um tênis de grife, uma roupa assim ou assado. Jovem gosta de novidades. Se não tem recursos, muitas vezes os traficantes e aliciadores se aproveitam da situação: Você quer comprar aquele tênis? Ora, isso é fácil de resolver. Vá entregar este pacotinho no endereço tal que depois eu lhe dou o dinheiro. Assim ele vai sendo corrompido. É um passo para o tráfico e o consumo.
CIDADÃO: E a questão do toque escolar?
JOÃO: É uma situação que vejo assim: no nosso tempo, nós íamos para a escola e ponto final, ninguém discutia a possibilidade de que não se quisesse ir à escola. Hoje, parece que tem pais que querem cobrar para que o filho vá à escola! Ocorre que o adolescente de hoje parece não gostar mesmo de estudar. Ele foge da escola e vai pra rua, para a lan house...A lei brasileira é muito clara: o adolescente, no Brasil, tem que freqüentar a escola. Muitos pais afirmam que levam o filho até o portão da escola. Pois é, mas se ele está fugindo, tem que levá-lo até a sala de aula. O Conselho e a Vara da Infância e Juventude não fazem nada mais que cumprir a lei.
CIDADÃO: Um caso muito discutido foi o da decisão do Conselho de fazer com que as mães acompanhem os filhos na sala de aula. Foi uma medida extrema?
JOÃO: É bom que se diga que, quando o Conselho adota uma posição dessas, ele já esgotou todas as outras medidas possíveis. Às vezes, se ouve por aí: O Conselho Tutelar tirou a criança da mãe! Ora, o Conselho não tira a criança da mãe, a não ser que esta esteja negligenciando, praticando maus-tratos. Antes disso, há um longo trabalho de orientação e encaminhamento. Depois de tudo isso é que, num caso extremo, isso poderia acontecer. O primeiro caso do toque escolar, que envolveu uma menina, chegou a um ponto em que a mãe disse: Eu não consigo controlar a situação. Por isso propusemos a ideia da mãe ir à sala de aula. É para gerar o exemplo, gerar o hábito. A mãe está lá para mostrar o caminho à filha, não há nenhum sentido de punição.
CIDADÃO: Qual é a opinião pessoal do cidadão João dos Reis sobre aquela matéria do Fantástico?
JOÃO: Fica um pouco difícil falar só como cidadão, porque não consigo deixar de lado minha experiência no Conselho. Mas digo o seguinte: a matéria teve sensacionalismo, teve alerta, mas a situação não é tão forte como as imagens mostradas. Há coisas que, às vezes, você é obrigado a engolir. Desafio qualquer cidade a provar que não tem problemas de drogas, de prostituição, de descuido com a criança e o adolescente. O sensacionalismo é muito desagradável. O contexto da produção daquela matéria é muito discutível.