Em 1996, o eletricitário José Domingos Eugelmi alcançou a antes tão sonhada aposentadoria. Não demorou e ela se transformou em pesadelo: o inquieto Zé Padre- apelido que recebeu nos tempos da Cesp - precisava ter o que fazer. A solução veio em 1999, na forma de um estúdio de gravação chamado JAM Jazz After Midnight. Zé Padre fez curso em São Paulo para aprender a nova profissão. Ele desenvolveu técnicas e segredos para oferecer um serviço que não tem paradigma na região. Depois de mais de uma década, porém, ele decidiu deixar Fernandópolis e voltar para Murutinga do Sul, de três mil habitantes, onde vivem seus irmãos. Qual a razão da decisão? O Zé Padre, que foi o primeiro secretário e o primeiro captador de recursos da AVCC, parece magoado com a cidade. Nesta entrevista, ele se queixa de guetos sociais existentes em Fernandópolis, que fechariam as portas à gente comum, como ele se intitula. Zé Padre, que é divorciado, deixa os filhos Giovano, de 31 anos, e Igor, de 28, em busca de paz na pequena Murutinga. Perdem com isso seus amigos e os apreciadores da boa música, já que ele sabe recuperar discos danificados como ninguém.
CIDADÃO: Qual é a origem desse apelido Zé Padre?
EUGELMI: Nasci numa família católica, a minha avó me levava à igreja todos os dias. À noite, ainda ia à reza noturna. Fui crescendo no catolicismo, sempre interessado na leitura da Bíblia. Hoje não me interesso mais pelo Velho Testamento, só pelo Novo, onde estão, efetivamente, os ensinamentos de Jesus. Enfim, cresci nesse meio religioso. Aí, na juventude, dei cursos de batizado, casamento imagine só, eu era solteiro e dava cursos de casamento! Fui trabalhar na Cesp, e tempos depois me mandaram para a barragem de Água Vermelha. Fui morar numa pensão em Guarani DOeste era 1973. Era a pensão do Zé Cordeiro. Um dos meus colegas da Cesp era o Nivaldo Marçal, já falecido. Cheguei a Guarani DOeste e comecei a organizar terços e reuniões, porque a igreja quase sempre estava fechada. O Marçal começou a me chamar de Padreco. De Guarani para a usina, foi um pulo pro apelido. Só que alguns não sabiam o que era padreco e começaram a me chamar de Zé Padre. Nunca reclamei. Anos depois, estudei a numerologia desse apelido e descobri que ele me faz muito bem, porque dá número 3, que é um número fundamental na minha vida.
CIDADÃO: Uma das razões que estariam fazendo você ir embora da cidade seria a mentalidade estreita e grupal que prevaleceria na sociedade de Fernandópolis. Por que você formou esse conceito?
EUGELMI: Vou dar um exemplo. Há uns 20 anos, havia aquela falta de álcool combustível, e meu carro era a álcool. Formavam-se aquelas filas aguardando a chegada do caminhão-tanque, os amigos dos donos dos postos negociavam um jeitinho de deixar seu carro lá. Saiu então uma portaria que determinava que as filas só poderiam ser formadas a partir do momento em que o caminhão encostasse na bomba. Tirei uma cópia dessa portaria e fui ao posto. Quando o caminhão chegou, encostei meu carro na bomba. O dono falou que eu deveria entrar na fila, e respondi que a fila começava em mim. Mostrei a portaria, mas ele resolveu chamar a polícia, para me retirar da bomba. Não pude abastecer. Procurei o juiz de Direito da época, e ele não me atendeu. Então, essa característica a de existir gente que manda na cidade sempre me incomodou. Vi na fila que ali estavam os carros de pessoas da elite da sociedade. Ora, nunca fui nem quero ser membro da nata da sociedade de lugar nenhum, mas não aceito esse tipo de privilégio. Quero ser respeitado como ser humano.
CIDADÃO: Em relação a fatos positivos de Fernandópolis, o que você poderia citar?
EUGELMI: Uma coisa que eu adoro em Fernandópolis é a água (risos). O banho daqui é a coisa mais deliciosa do mundo. A água é quente, é lisa. Quando tomo banho em Murutinga do Sul, parece que a água é pedra-ume. Na verdade, eu tenho em Fernandópolis muitas pessoas de quem gosto muito, e que acredito que gostem de mim. Não posso dizer o quanto essa amizade é intensa, da parte dos outros, porque não estou dentro da cabeça deles. Eu sei é em relação a mim, e pode ter certeza que há gente aqui que tem a minha admiração.
CIDADÃO: Fala-se muito em desenvolvimento, em Zona de Processamento de Exportações. Você acha que esse desenvolvimento tem que vir acompanhado de uma mudança de mentalidade?
EUGELMI: Acho que tem que haver, sim, e tem que existir também a abertura à comunidade nessa questão da administração da cidade. Digamos, uma organização por bairros, onde cada líder se organizaria e falaria com a população e com o prefeito e vereadores. Ninguém pode administrar bem sozinho, tem que haver uma participação comunitária. Isso não acontece nem em Fernandópolis, nem na grande maioria dos municípios do Brasil. Essa mudança de mentalidade seria muito benéfica. Se eu sou um prefeito e não ouço minha comunidade, viro um monarca, na base do aqui quem manda sou eu.
CIDADÃO: O equilíbrio dos poderes exige um Legislativo forte?
EUGELMI: Vejo assim: o Poder Executivo tem as suas prerrogativas, entre elas a de fazer projetos e enviá-los à Câmara. Esta, por sua vez, tem que analisar se o que está contido naqueles projetos é necessário para a comunidade, para o bem comum. Então, tem que haver entrosamento entre Executivo e Legislativo. A grande função do Legislativo é separar o joio do trigo, ver se o projeto do Poder Executivo é útil e interessante ao bem comum. Não pode ser na base do manda pra cá que a gente assina.
CIDADÃO: O que você faria em Fernandópolis, se fosse prefeito?
EUGELMI: Um parque infantil, onde se pudesse levar os filhos e netos. Um parque infantil de qualidade, com todos os espaços lúdicos. Nem que fosse preciso entregar a exploração a alguma empresa comercial, desde que fizesse a manutenção adequada desse espaço. E aí, se gasta uma fortuna para reformar a antiga Praça da Liberdade, uma obra sem sentido algum, e não se faz um parque. O zoológico está abandonado, ao Deus-dará. Não temos um zoológico para ir aos domingos dar pipoca aos macacos, como diria o Raul Seixas. Isso é que seria fundamental: dar à criança aquilo que ela precisa, que é um lugar para brincar.
CIDADÃO: Em sua opinião, o Brasil evoluiu nesses últimos anos?
EUGELMI: Fui sindicalista diretor do Sindicato dos Eletricitários de Campinas - e conheci o Lula nos congressos. Muitas vezes comemos churrasco e escutamos música sertaneja juntos iam o Lula, o Zé Dirceu, que sempre foi um mala (risos), o Genuíno, que era meio arrogante. Porém, tinha o Arlindo Chinaglia, um cara legal, com um discurso diferente. O Lula tinha um discurso totalmente diferente do de hoje. Ele foi picado pela mosca azul do poder, é óbvio. O poder, como se sabe, é orgásmico. Apesar de ter votado no Lula nas quatro vezes em que foi candidato à presidência, estou decepcionado. Tomara que ele saia do plano político brasileiro e tomara que a Dilma não ganhe, porque se ganhar será catastrófico assim como será catastrófico se o Serra ganhar. Eu não voto como num jogo, não se tem que votar para ganhar, e sim em quem você achar que é melhor, ou menos pior para o país. Vou votar na Marina, que é meio sonhadora, mas ainda sim é melhor que os outros.
CIDADÃO: Além da música, você tem algum outro hobby?
EUGELMI: Gosto de assistir aos jogos do São Paulo Futebol Clube, mas não sou fanático. Só sei que o goleiro é o Rogério Ceni, o resto da escalação eu não sei. Gosto também de poesia, até escrevo alguma coisa. Gosto de teatro, de música, que escuto o dia inteiro. Adoro religião, conversar sobre religião, sobre espiritualidade. Estou estudando o Código da Umbanda, um livro instigante. Gosto também de andar descalço, de ficar na beira de rio não pescando e gosto muito da chuva. E gosto demais, é claro, do sexo oposto (risos).
CIDADÃO: O que você vai fazer em Murutinga do Sul?
EUGELMI: Fui convidado veja que coisa maravilhosa, aos 60 anos de idade fui convidado para trabalhar numa financeira na região de Andradina e Três Lagoas. Isso me trouxe uma espécie de rejuvenescimento, parece que vou tirar o título de eleitor pela primeira vez. Estou muito disposto, com vontade de viver. Segundo Assis Chateaubriand, o trabalho dignifica o homem. O homem sem trabalho não tem dignidade. Não que eu não trabalhasse aqui, mas eu gosto de conviver com gente, não gosto da solidão. Lá, vou ter essa oportunidade, além de voltar às origens. Nas folgas, vou escrever, tem muita coisa que tenho vontade de escrever. É como diz a música de Zé Fortuna (canta): Ao passar pela velha porteira/Senti o meu povo mais perto de mim. Vou fazer introspecção, reviver aquele meu tempo. Sou muito saudosista e não tenho vergonha de dizer. Tive uma juventude pobre, porém maravilhosa. Tive um avô fantástico, que me ensinou muito da vida. Meu pai morreu quando eu tinha apenas três meses, mas meu avô supriu isso. Murutinga será o meu renascimento na verdade, a minha ressurreição, porque dizem que ressurreição é renascer no mesmo corpo. Então, vou fazer a minha ressurreição.
CIDADÃO: Fica alguma mágoa de Fernandópolis?
EUGELMI: Não! Não posso citar nomes de pessoas que me são caras em Fernandópolis, porque poderia cometer injustiças por esquecimento, mas sei que elas gostam de mim. De mim e do serviço que faço. Só que tentarei não vir muito a Fernandópolis, porque não deixarei nada aqui. O padre Zezinho diz que amigos são como trilhos, que caminham juntos, mas dificilmente se encontram. Então, terei esses amigos e companheiros que deixarei aqui, mas só os verei se o destino assim quiser. Pretendo me fixar em Murutinga e terminar meu tempo por lá.