Kikão: 40 anos de quadro-negro

20 de Agosto de 2025

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Kikão: 40 anos de quadro-negro
Ele tem o visual de professor de cursinho dos anos 70. Quem o vê caminhando lentamente pelos corredores do Colégio Cidade de Fernandópolis (Anglo), percebe como os alunos gostam dele. Haig Kricor Hamparian, o “Kikão”, é filho de armênios. Nascido em São Paulo, foi músico e feirante antes de virar professor. Hoje, mora em Votuporanga. Casado com Izabel Godói Hamparian, pai de Camila e Carol, semanalmente esse professor de Física de 59 anos de idade vem a Fernandópolis desfilar conhecimento e bom humor. Às vésperas do Dia do Professor, “Kikão” fala das doçuras e mazelas da profissão: “Só a gente mesmo é que sabe o que é”, garante.

CIDADÃO: Como foi que você se tornou professor?
KIKÃO: Venho de uma família de poucas posses. Então, na época em que iria fazer faculdade, minha vontade era fazer Engenharia. Naquela época, a construção de Brasília empolgou os jovens, todo mundo queria fazer Engenharia. Porém, devido à falta de recursos, acabei indo para o Magistério, e, graças a Deus, me dei muito bem, adoro dar aulas. Hoje está meio difícil de ganhar dinheiro lecionando (risos), mas adoro dar aulas.
CIDADÃO: O que você fazia, antes de se tornar professor?
KIKÃO: Eu era músico, e também trabalhei na feira, meus pais eram feirantes. Depois, comecei a dar aulas particulares, e dali fui mesmo para a lousa. Na época da feira, eu levava a barraca para o lugar onde ela aconteceria, montava-a e aguardava a chegada dos meus pais. Dali, eu ia para a faculdade. Isso foi em São Paulo. Depois de formado, passei por muitas escolas na capital. Isso é muito comum, lecionar em diversas unidades. Para que você tenha uma ideia, tenho 61 registros na minha carteira de trabalho. Em março, completei 40 anos de lousa; já passaram por mim mais de 100 mil alunos. Tenho ex-alunos por tudo quanto é lado.
CIDADÃO: Você consegue se lembrar de todas as escolas pelas quais passou?
KIKÃO: Ah, foram muitas, é difícil enumerar. Quando morava em São Paulo, dei aulas em Osasco, na Penha, num cursinho que possuía várias unidades, na Lapa, até em Sorocaba eu dei aulas. Isso morando em São Paulo. Depois, cheguei a dar aulas em Araçatuba, ainda morando na capital. Depois, eu e a Izabel resolvemos ter filhos e mudamos para o interior. Por isso, sempre andei muito para dar aulas. Só este ano, estou dando aulas em sete escolas. Sou um caixeiro-viajante da Educação (risos).
CIDADÃO: Seus alunos comentam que seus métodos pouco ortodoxos acabam surtindo resultados bastante positivos. Afinal, o que é que você faz de tão diferente na sala de aula?
KIKÃO: Sempre tem uma historinha, um personagem que é muito atual, e aparece uma musiquinha no meio, enfim, qualquer coisa que seja útil para ajudar o aluno na memorização daquilo que é preciso. Mas sempre tem uma historinha no meio. Vai rolando na hora, meio na criatividade meio no improviso. Mas o mais importante é a boa estrutura que você encontra em escolas como o Anglo, cujo material didático é excelente, assim como a infra-estrutura que a escola nos fornece.

CIDADÃO: Do ponto de vista pedagógico, o que melhorou e o que piorou nas últimas décadas?
KIKÃO: Hoje é tudo muito conceitual. Para que se tenha uma ideia, há 30, 35 anos nós preparávamos o aluno para responder testes e ponto final. Hoje, a coisa é diferente, o aluno tem que raciocinar: afinal, quem faz as contas para ele é o computador. Então, ele precisa montar as coisas e programar o que lhe é necessário. Tem que raciocinar bastante. Atualmente, tenta-se fazer algo mais abrangente, com a multidisciplinaridade. Desenvolve-se todas as matérias, que é pro aluno ter uma visão geral de tudo, do mundo em que está vivendo. Hoje, é muito comum que num mesmo texto apareça redação, química, física, matemática, às vezes até alguns conceitos de biologia para o cara desenvolver o exercício. O ensino, hoje, tenta ser menos conteudista, lidando só com o conceitual. Mas não dá pra deixar totalmente de lado o conteúdo, disso não tenho dúvida.
CIDADÃO: O professor da atualidade é provocador, no sentido de tentar extrair do estudante uma visão crítica da realidade que o cerca?
KIKÃO: Sem dúvida, principalmente os professores da área de humanas, que são mais “agressivos” nesse sentido, enfatizam mais essa prática. Tem que exigir do aluno, porque eles exigem cada vez mais da gente. A molecada está ficando muito acomodada, com essas condições cada vez mais fáceis que ela encontra. A cada dia o ensino fica mais favorável ao aluno. Só faz pesquisa de verdade quem efetivamente está a fim; o comum é que os alunos cliquem o tema na Internet e o computador faz tudo. Aí, aparecem dez trabalhos iguaizinhos na sala de aula.
CIDADÃO: Qual é a sua opinião sobre a Internet, relativamente ao ensino? É ferramenta útil ou brinquedo perigoso?
KIKÃO: As duas coisas. Brinquedo perigoso ela é, se o aluno não tiver maturidade suficiente para mexer com certas coisas que estão disponibilizadas. Mas, não resta dúvida de que a Internet é um recurso muito cômodo, porque tudo de que você precisa você encontra lá.

CIDADÃO: Paulatinamente, o governo brasileiro foi relegando os professores a um quinto plano. Hoje, a questão salarial é terrível. Há professores, em São Paulo e no Rio, falando em organizar passeatas com os manifestantes totalmente despidos, para mostrar o real estado de coisas. Por que o Brasil vive esse fenômeno?
KIKÃO: Rapaz, só para que você tenha uma ideia, quando comecei a dar aula em cursinho, advogado deixava de advogar para dar aula; engenheiro deixava de projetar para dar aula; até médico dava aula! Hoje, uma consulta médica custa muitas vezes mais do que uma aula do professor, seja quem for. Caiu muito. No Estado, então, a desvalorização é um absurdo. Coitado do professor, realmente a situação é caótica. Além de não ter respaldo, agora deram de cobrar de tudo dele. Só que o aluno não oferece essa condição para que a coisa melhore, porque ele tem uma lacuna muito grande, ficou muito defasado. Quiseram acabar com o analfabetismo de apor o polegar; só que nós passamos a ter um monte de analfabetos que sabem escrever. Lamentavelmente, isso está acontecendo.
CIDADÃO: O vestibular, atualmente, afere realmente os conhecimentos do aluno?
KIKÃO: Existem vestibulares muito sérios que efetivamente fazem isso. Algumas universidades estão tentando alterar esse tipo de avaliação. Essas clientelas vêm com carência de uma série de pré-requisitos para entrar na universidade, já dei aula em faculdade e sei que às vezes um aluno de terceiro colegial sabe muito mais do que um aluno de primeiro ano de faculdade, talvez até mais do que um de segundo ano. Provavelmente, porque ele é mais esforçado. E nós estamos numa região onde a mentalidade está mudando. Está acabando aquela história de simplesmente ter um diploma, seja lá do que for, e não saber exercer a profissão. Para usar os conhecimentos. Não adianta ser mais um, tem que ser o melhor.

CIDADÃO: Passados 40 anos de magistério, a pergunta é inevitável: valeu a pena?
KIKÃO: Ah, valeu. Eu me sinto realizado, tenho muita satisfação pessoal. Tudo o que você puder imaginar, profissionalmente falando, eu consegui. Não tenho mais nenhuma ambição profissional. Não é que eu esteja jogando o boné; é que peguei fases muito boas na educação, ganhei dinheiro, o que hoje é bem mais difícil. Mas o amor pela profissão, esse continua. Quando entro na sala de aula, eu me transformo. É como o palhaço de circo que está com o filho hospitalizado, mas ainda assim tem a obrigação de entrar sorrindo e fazer todo mundo rir. Nós também temos que ser assim. Eu tenho uma hérnia que dói muito, mas quando entro na sala eu a esqueço.
CIDADÃO: Qual é a sensação de encontrar um ex-aluno, que conseguiu vencer na vida e ocupa cargo importante?
KIKÃO: A gente se sente muito orgulhoso. Vou narrar um fato que aconteceu há uns 30 dias. Fui testemunha de uma senhora que ia se aposentar e não tinha registro em carteira porque trabalhou na roça. O juiz que presidiria a audiência estava de férias, veio um substituto. Entrei na audiência, sentei-me, ele me olhou, fiz o juramento, respondi às perguntas. O advogado daquela senhora fez perguntas, o do INSS também. No fim, o juiz perguntou se havia mais perguntas. Todos se deram por satisfeitos. Aí, perguntei se eu poderia sair. O juiz disse: “Não, o sr. tem que assinar o termo”. Aí, o juiz não resistiu: “O sr. por acaso é o professor Kiko?” Respondi que sim. Ele falou que eu tinha dado aulas para ele em mil novecentos e não-sei-quanto, em São José do Rio Preto. Aí, a assistente dele virou-se e disse: “Ele também deu aulas pra mim e pros meus filhos”. O advogado do INSS acrescentou: “Ele deu aulas pras minhas filhas”. A estagiária do advogado emendou: “Ele também foi meu professor”. Por fim, o advogado da requerente também disse ter sido meu aluno. Só não dei aula pra velhinha que estava se aposentando!