O dia em que o vice-prefeito e 7 vereadores foram para a cadeia

20 de Agosto de 2025

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O dia em que o vice-prefeito e 7 vereadores foram para a cadeia
Arquivo da Polícia Civil de Fernandópolis, que está sendo organizado e catalogado pelo delegado Raul Bíscaro Filho, conta a história da cidade sob a ótica das ocorrências policiais

O escrivão de polícia Manoel Fernandes Ramos mal podia acreditar no que via: diante dele, escoltados por um jovem militar, estavam o vice-prefeito Jacob de Angelis Gaeti (então no exercício do cargo de prefeito) e sete vereadores do município de Fernandópolis. Esses vereadores – entre eles um médico, um advogado e alguns comerciantes, a nata da sociedade – estavam presos em flagrante.

Por mais absurda que a história pareça, ela é real. Aconteceu no dia 3 de novembro de 1966, quando o prefeito de Fernandópolis era Percy Waldir Semeghini. Uma sentença condenatória o havia afastado do cargo. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal devolveu a Percy os direitos políticos.

Quando ele se preparava para voltar ao cargo, um mandado de segurança requerido por Nelson Rodrigues da Cunha e outros – a ala pachequista da Câmara Municipal – obtivera liminar, concedida pelo juiz de Direito da época, o Dr. Ayuch Amar, então com 26 anos de idade.

Isso aconteceu no dia 23 de outubro, o que provocou o cancelamento da sessão da Câmara do dia 24, em que Percy seria reempossado no cargo. Dias depois, porém, Percy retornou de Brasília com documentos do STF que lhe garantiriam a plenitude dos direitos políticos. Convencidos disso, a maioria dos vereadores – oito – o reempossou numa sessão realizada no dia 29 de outubro.

Dois dias depois, ao retornar de São Paulo e tomar ciência dos fatos, o juiz Amar considerou a atitude dos vereadores como desobediência a determinação judicial e ordenou a prisão de Jacob Gaeti, que era conhecido como Vigorelli, e dos vereadores Wagner Rodrigues Costa (presidente do Legislativo), Antonio Garcia Pelaio, Gentil Franco de Almeida, Jorge Aidar, José Antonio de Figueiredo, o Zé Cearense, Matsuo Yendo, José Akira Massuda e Feres Bucater. Todos eram da Aliança Renovadora Nacional, a Arena.

Esses vereadores compunham a bancada situacionista da Câmara e votaram a favor da posse de Percy. Dos oito, apenas Feres Bucater escapou da prisão, pois estava viajando.


GENTILEZA
Passados 43 anos, o único dos políticos que foram presos naquele dia que ainda está vivo é o advogado Jorge Aidar, que na época tinha 35 anos de idade. Até hoje ele considera “precipitada” a ordem de prisão. Aidar, porém, faz questão de destacar a gentileza e respeito do delegado Nelson Lourenço Vanni: “O Dr. Nelson fez questão de me deixar ‘detido’ na sua própria sala”, conta o advogado.

O delegado Vanni considerou que não haveria necessidade de manter os vereadores e o vice-prefeito na prisão, e, após o interrogatório, arbitrou uma fiança de 5 mil cruzeiros para cada um e determinou: “Expeça-se Alvará de Soltura em favor dos acusados em questão, para soltos se defenderem no processo”.

Consta nos anais que esse episódio da política de Fernandópolis – na época, gozando do pouco lisonjeiro apelido de “Processópolis” - que no dia das prisões, um grupo de empresários da empresa Ultrafértil, interessado em instalar um posto de sementes na cidade, diante do quadro caótico, desistiu imediatamente da idéia e riscou a cidade de seu plano de expansão.

Esse imbroglio é um dos muitos casos que podem ser encontrados no arquivo da Polícia Civil de Fernandópolis, que está sendo organizado e catalogado pelo delegado Raul Bíscaro Filho, titular do 1º Distrito Policial.

cerca de dois anos, a cadeia foi desativada e o prédio reformado. O delegado deu início ao projeto e hoje o arquivo ocupa uma das antigas celas, que está limpa e com pintura reluzente.

Bíscaro tem a ajuda do escrivão-chefe Ernesto Pereira da Silva Junior e de duas jovens funcionárias municipais, Nailda Cangirana Ramos e Letícia Aparecida Pereira. As moças utilizam uma das salas para catalogar, fazer juntada de papéis e registrar em computador os inquéritos, elencados em ordem cronológica. Também os livros obrigatórios de registros de ocorrências passam por esse processo.

O delegado garante que iniciou esse trabalho porque vê nele uma importante fonte de preservação da história e da memória do município. “É também um campo de trabalho fascinante para os cientistas sociais. Veja, por exemplo, a grande incidência de homicídios, suicídios e crimes de sedução registrados na década de 50. Em contrapartida, quase não havia estelionatos e furtos. A criminalidade era diferente, parece que havia um código de honra, hoje inexistente. Não encontrei um único caso ligado a entorpecentes. E olha que já arquivamos os documentos de 1950 até 1967”, afirmou Raul Bíscaro.

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CASOS POLICIAIS DO PASSADO

Concunhado mata concunhado por ciúme

Inquérito policial datado de 27 de maio de 1953 registra um homicídio onde Carlino matou seu concunhado Arlindo (os nomes são fictícios). O crime aconteceu num matagal próximo ao perímetro urbano de Fernandópolis. O motivo: Arlindo suspeitava que o concunhado mantinha um romance secreto com sua mulher, Ana, e jurou matá-lo. Temendo ser assassinado, Carlino antecipou-se e armou uma emboscada para o concunhado. Desferiu-lhe três tiros. O último atingiu a cabeça da vítima. O caso foi registrado pelo delegado Walter de Castro.


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Envergonhada pelo adultério, mulher comete suicídio

Os registros da polícia apontam que, no dia 9 de outubro de 1953, Maira se matou tomando veneno. As investigações apontaram que o marido dela, José Miguel, descobrira que a esposa o traíra. O insólito dessa revelação é que a mulher estava infestada por pthirus púbis, um piolho conhecido popularmente como “chato”, que se concentra na região genital. Ao constatar a infestação da mulher, José Miguel a pôs em confissão e ela acabou revelando que o havia traído. Apesar da mágoa, José Miguel resolveu perdoar a mulher, já que o casal tinha três filhos. Os familiares, porém (tanto os de Maira quanto os de José Miguel) censuraram a atitude dela e passaram a hostilizá-la. Cada vez mais triste, ela não resistiu. Numa tarde de outubro, o marido entrou no quarto e viu a esposa transfigurada, já sob o efeito do veneno. Ela só teve tempo de lhe dizer: “José, me perdoe. Meu erro já está vingado. Cuide dos nossos filhos”. Em seguida, morreu.

Discussão por causa de vacas leva a dois assassinatos

Um bate-boca por causa de algumas vacas acabou levando Juvenal a matar Armando, em 23 de junho de 1952, com um tiro de garrucha. O crime aconteceu na Fazenda Santa Izabel, então pertencente ao deputado Anísio Moreira, no município de Pedranópolis, por causa da acusação de que um teria soltado as vacas do outro. Quatro dias depois, Baltazar, pai de Armando, saiu de um matagal à margem da estrada do Córrego das Pedras empunhando uma espingarda e deteve um caminhãozinho em cuja boleia estavam o motorista e Juvenal. Na carroceria, havia um rapazola. Era noite fechada. Baltazar mandou o motorista descer e desfechou um único tiro em Juvenal. Dirigindo-se ao motorista, o atirador disse: “Pronto, o homem já está morto, pode levar”.

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Raul Bíscaro: “Nosso arquivo será aberto ao público”

Empolgado com os bons resultados do trabalho de organização do arquivo da polícia de Fernandópolis, o delegado Raul Bíscaro Filho garante: estudantes, pesquisadores ou qualquer pessoa interessada poderá consultar o material livremente. A seguir, a entrevista que o delegado concedeu com exclusividade a CIDADÃO.

CIDADÃO: Por que o sr. resolveu fazer esse arquivo?
BISCARO: Quando assumi, encontrei esse arquivo desarrumado, jogado num quartinho do antigo prédio da CIRETRAN. Aquilo me incomodava muito, porque eu tinha a percepção de que ali estava a história da Polícia Civil da região, jogada às traças. Aos poucos, fui conversando com os colegas sobre a importância de guardar esse material de forma adequada. Com a reforma do prédio, resolvi fazer a recuperação total do arquivo. O cupim já havia consumido muita coisa. Conseguimos com a prefeita Ana Bim uma funcionária para limpar esse material. Depois, começou a fase de recuperação do material danificado. Os inquéritos destruídos foram refeitos tendo como referência o registro, onde há uma cópia. Todos os prontuários estão aí, não falta nada.

CIDADÃO: Ao manusear os documentos, o sr. certamente deve ter feito uma comparação entre os tipos de delitos mais frequentes hoje em dia e os daquela época. Qual é a grande diferença?
BISCARO: No inicio dos anos 50, havia muitos homicídios. Os suicídios também eram ocorrências frequentes. Sedução era um crime comum na época. Os inquéritos eram feitos de forma bem descritiva, os delegados da época tinham a preocupação de descrever o local de uma maneira que o leitor “via” a cena, era como se estivesse ouvindo uma novela de rádio, tamanha a perfeição e a riqueza de detalhes. Hoje, isso já não é feito, porque existe a polícia científica, cujos técnicos tiram fotografias, fazem croquis, etc.
CIDADÃO: É possível constatar que os casos de furtos e estelionatos eram raros. Por que será?
BISCARO: Acho que é por causa da própria situação atual do país, onde a penúria social acaba compelindo jovens a praticarem furtos.

CIDADÃO: Por outro lado, há muitos crimes por motivos ligados à honra...
BISCARO: Ah, sim. Veja uma coisa: naquele tempo praticamente não havia ameaça. Quando o sujeito falava “vou matar”, ele matava mesmo. Como você pôde ver, existem casos em que o sujeito falou que ia matar alguém, e este foi lá e matou primeiro!

CIDADÃO: O sr. encontrou algum inquérito relativo a drogas, entorpecentes, lança-perfume ou coisa do gênero?
BISCARO: Não, não. Até o inicio dos anos 70, que estamos começando a catalogar agora, não há nada disso. Outro fato interessante é que você encontra muitos nomes de cidadãos ilustres, que hoje até são nomes de ruas, e que um dia passaram pela polícia – ou como testemunha, ou como vítima, ou até como indiciados.
CIDADÃO: Existe previsão de quando esse trabalho estará concluído?
BISCARO: É um trabalho demorado. Acredito que ainda leve mais um ano. Queremos que esse arquivo seja de fácil acesso para estudantes, historiadores e pesquisadores em geral. Também estamos fazendo as estatísticas a respeito dos tipos de crimes ocorridos em cada ano.