Dona Ana, testemunha da história da cidade

20 de Agosto de 2025

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Dona Ana, testemunha da história da cidade
Da janela do segundo andar, o sorriso meigo de dona Ana Fernandes Phelippe se esparrama sobre Fernandópolis, na manhã de outono que antecede o aniversário de 70 anos da cidade. Essa portuguesa de Miranda do D’Ouro, na região de Trás-os-Montes, se acostumou a acompanhar o crescimento da terra que adotou, o progresso pessoal de gente conhecida, o nosso dia-a-dia, enfim, emoldurado pelas portas altas da Casa Lisboa, onde ela começou a trabalhar ainda menina e está há 56 anos. Aqui ela conheceu o marido, Ventura, com quem teve o filho Carlos, arquiteto, comerciante e corintiano, não necessariamente nessa ordem, além dos três adorados netos – Carolina, Mariana e Gabriel. Do pórtico da Lisboa, ela acompanhou as mudanças físicas e sociais da cidade. Sua memória alcança com facilidade nomes e fatos do passado. Dona Ana é testemunha viva da história da Vila Pereira, aonde chegou em 1943 e de onde jamais pretende sair.

CIDADÃO: Por que seus pais vieram para o Brasil?
ANA: Meu pai, Sebastião Fernandes, tinha espírito aventureiro. Ele veio ao Brasil muitos anos antes de eu nascer, para visitar um irmão que aqui morava. Ele adorou o país. Depois, voltou para Portugal, mas não se acostumava mais. Vendeu tudo o que tínhamos e viemos para cá. Meu irmão Virgílio tinha apenas seis meses.

CIDADÃO: Ao chegarem ao país, para onde foram?
ANA: Fomos morar perto de Barretos, num sítio que meu pai comprou. Depois, fomos para Olímpia, onde meu pai conheceu Joaquim Antonio Pereira. Este convidava as pessoas a se mudarem para a Vila Pereira, que ele fundara. Isso, em 1943. Vim para cá com 7 anos.
CIDADÃO: Sua família é proprietária da Casa Lisboa, uma das mais tradicionais lojas de Fernandópolis. Qual é a origem da Lisboa?
ANA: Minha sogra, dona Maria, começou no comércio em Mirassolândia. Eles tinham vindo de Portugal, e meu sogro trabalhou muito tempo como empregado no comércio. Eles instalaram uma vendinha, de sociedade com outro português, em Mirassolândia. Lá, ela soube que havia uma cidade muito promissora, chamada Vila Pereira, e decidiu mudar-se para cá. Isso também aconteceu em 1943. Só que, naquele momento, Brasilândia era melhor que a Vila Pereira, e então instalou a loja por lá. Dez anos depois, tendo constatado que Fernandópolis – porque aí então já se chamava Fernandópolis – crescia mais, o médico, o cartório, todos estavam se mudando para cá, ela instalou a loja ali na praça central. O movimento do comércio na Brasilândia tinha diminuído muito. Em 1953, a Lisboa estava no endereço em que está até hoje.

CIDADÃO: Como foi que sua família conseguiu um ponto tão estratégico na Rua Brasil?
ANA: Ali funcionava o primeiro ponto de ônibus do município e a padaria do Cássio Vendramini. Minha sogra negociou com o Cássio, comprou o terreno dele. Realmente, é um dos melhores pontos da cidade.
CIDADÃO: A senhora passou a vida vendo Fernandópolis crescer, ali defronte à loja. Quais são as grandes recordações desse período?
ANA: Olha, sempre releio o livro sobre Fernandópolis, que foi publicado em 1996, e há muita coisa ali de que participei, ou vi, fui testemunha. Há lembranças muito vivas, como, por exemplo, do “footing”, que era uma coisa muito diferente. Havia muita gente na praça, o ambiente era bem animado. À noite, a gente saía na calçada e via as pessoas passeando no jardim. Isso acontecia principalmente nos finais de semana. As moças passavam e os moços olhavam, era a paquera da época.
CIDADÃO: Quem eram os seus vizinhos?
ANA: Tinha o sr. Saturnino Leon Arroyo, avô do ex-prefeito Milton Leão; o sr. Sano, da loja de calçados; tinha também o açougue do Antonio Bonassi, o bar do finado Dito Miyamoto, meu compadre. Havia ainda a farmácia do “seu” Coelho, que ficava onde hoje está a parte alta do prédio da Lisboa.

CIDADÃO: É verdade que os agricultores compravam tecidos a granel, quando vendiam a safra?
ANA: É, sim. Quando os agricultores vendiam a colheita, eles vinham às lojas e compravam para o ano todo. Aliás, traziam a família inteira, e compravam as peças de tecidos fechadas, para ir tirando quando precisavam. Se alguém precisava fazer uma camisa, a mãe tirava um corte para costurar. Ficava tudo igual, compravam peças fechadas, os tecidos das camisas e os tecidos das calças. Compravam para o ano todo, porque só tinham dinheiro na ocasião da colheita. Normalmente, a família vinha inteira no dia das compras, para escolher os tecidos. As mães costuravam as roupas da família. Ter máquina de costura em casa era comum.
CIDADÃO: O que vendia mais, roupas prontas ou os tecidos?
ANA: Os tecidos. O grosso da venda era de tecidos. A loja também vendia chapéus, malas, calçados. Depois, a cidade foi crescendo e apareceram lojas especializadas, ou seja, deste ou daquele segmento. Deixamos de trabalhar com muitos itens.
CIDADÃO: Essa “especialização” foi a grande mudança do comércio nesse meio século?
ANA: Sem dúvida. A gente deixou de trabalhar, por exemplo, com roupa infantil. Em contrapartida, apareceram várias lojas que só trabalham com esse tipo de produto. A roupa pronta aumentou demais, e tivemos que aderir à tendência, com a consequente diminuição da venda de tecidos.

CIDADÃO: Como era a qualidade dos tecidos que se fabricavam 50 anos atrás?
ANA: Era muito boa. O tecido brasileiro era muito bom. Hoje a coisa é diferente, praticamente só há tecidos importados. Lembro-me de marcas como a Bangu, a Nova América, de altíssima qualidade.
CIDADÃO: Os desfiles de 22 de Maio e 7 de Setembro passavam em frente à loja. A senhora se lembra bem dessa época?
ANA: Tenho muitas saudades desse tempo. Hoje a cidade está grande, a gente não tem tanto contato com o povo. Antigamente, a gente conhecia todo mundo. O desfile de aniversário da cidade era muito aguardado, vinha muita gente assistir. Mais do que hoje em dia. Era uma festa alegre, com belos carros alegóricos. As colônias, inclusive a portuguesa, produziam as suas respectivas alegorias.
CIDADÃO: Como era o seu sogro, o falecido Carlos Phelippe?
ANA: Era brincalhão, vivia fazendo brincadeiras com o “seu” Waldomiro (Renesto). O Carlinhos deve ter puxado isso dele. Era uma pessoa muito boa, nunca tive qualquer problema com ele. “Seu” Carlos era um homem íntegro, às vezes falava pouco, mas se dava bem com todos. Depois de velho, ficava na calçada, em sua cadeira, brincando com os transeuntes.
CIDADÃO: A senhora conheceu o Ventura em Fernandópolis?
ANA: Ah, sim. Quando eles saíram da Brasilândia e vieram com a loja para Fernandópolis eu tinha 16 anos. Começamos a namorar e fui trabalhar na loja. Este ano faz 56 anos que trabalho na Lisboa.
CIDADÃO: Valeu a pena?
ANA: Muito, eu faria tudo de novo. Interessante que todas as minhas lembranças são de fatos ligados a Fernandópolis, não lembro de nada de Portugal (risos). Eu amo esta cidade.