Para socióloga, mudanças no vestibular têm arestas a aparar

20 de Agosto de 2025

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Para socióloga, mudanças no vestibular têm arestas a aparar
Isabel Cristina Pricoli Calvo tem um vasto currículo profissional na seara da educação. Socióloga, com especialização em História Contemporânea, RH em Gestão, Recrutamento e Seleção e Admissão de Pessoas, ex-professora da rede particular nas cadeiras de Filosofia, Sociologia, História e Antropologia Cultural, essa paulista de Mococa, com residência em Fernandópolis, virou uma espécie de globetrotter do ensino: trabalha simultaneamente em São José do Rio Preto, Nova Granada, Olímpia, Ribeirão Preto e São Paulo. Em Fernandópolis, ela trabalhou no Objetivo, na FEF e no Anglo. Coordenadora de ensino, Isabel trabalhou também como orientadora vocacional. Nos últimos tempos, ela tem sido vista com frequência na TV: as emissoras querem saber sua opinião sobre as mudanças anunciadas nos vestibulares futuros pelo Ministério da Educação. Nesta entrevista, Isabel analisou os prós e contras da proposta e faz alguns alertas sobre os riscos a que podem ser expostos os jovens estudantes brasileiros. (Vic Renesto)

CIDADÃO: O MEC quer mudar o sistema do vestibular das universidades federais. Basicamente, quais seriam essas mudanças?
ISABEL: O Brasil tem 55 universidades federais e, em médio prazo, seria uma mudança substancial na maneira de se trabalhar os conteúdos dentro da escola. Hoje nós sabemos que o Brasil prioriza uma educação “conteudista”. Muitas vezes, o aluno aprende, em matérias dadas no ensino médio, como Química, Física, Matemática, conteúdos que ele só veria se fosse fazer uma faculdade dessas áreas. Então, há um aprofundamento de alguns conteúdos e conceitos que se tornam extensos e não serão necessariamente úteis para a vida prática das pessoas, no sentido de que nós vivemos num mundo que valoriza a utilidade. Aqueles alunos que vão prestar outros conhecimentos – humanos, ciências sociais – são desprestigiados, por assim dizer, porque existe um acúmulo de aulas de determinadas disciplinas, em detrimento de outras que são importantes também, para a compreensão do mundo. Acredito que qualquer mudança é importante, porque mexe e mobiliza as pessoas, faz com que discutam as questões. Porém, no Brasil, temos uma tradição de promover mudanças sem que a população esteja informada do que está acontecendo. Nesse caso, trata-se da população estudantil, acadêmica, a própria família é envolvida no processo. As escolas estão se mobilizando para saber o que querem. Na verdade, as pessoas não têm o hábito de acompanhar essas práticas através da mídia; os alunos, entretanto, têm nos perguntado muito sobre essas mudanças. Os alunos até acreditam que serão prejudicados com essas mudanças, desconfiam que haveria alguma maneira de beneficiar alguém. Na verdade, a mudança atingirá todas as pessoas. Algumas instituições federais não simpatizam com essas mudanças – o Rio Grande do Sul, por exemplo, já afirmou que não vai aderir – Santa Catarina e Paraná estão refletindo sobre as novidades. Aliás, “refletir” é a palavra que o ministro da Educação tem sugerido para as instituições. Existem quatro possibilidades para essa mudança, porque o ministro Haddad entende que a instituição deve ter a liberdade de escolher a modalidade que ela quer adotar para o seu vestibular. Então, o senso comum indica que o vestibular virou um grande Enem – mas não é assim que acontecerá na prática. Existem as tais quatro modalidades que incluem o Enem para o aluno ser aprovado no curso universitário no Brasil a partir de agora ou do próximo vestibular, ou dos próximos dois anos. Isso quer dizer que, nos vestibulares que têm duas fases, uma das possibilidades que o governo abriu para a instituição é que ela considere a primeira fase – a nota do Enem – como classificatória para uma segunda fase. A outra é que a universidade use as duas modalidades – nota do Enem e nota do vestibular – para fazer a sua média.

CIDADÃO: Fala-se muito em sistema de avaliação. Mas afinal, o que o Ministério quer avaliar?
ISABEL: Na verdade, querem estender a avaliação – que já começou com o Enem – às habilidades e potencialidades que às vezes não são avaliadas na escola. Não são trabalhadas como prática diária de ensino. Ainda se prioriza muito nos cursinhos e escolas particulares o aluno que vai prestar aquelas carreiras que já são bastante conhecidas no Brasil – casos de Direito, Engenharia e Medicina. Hoje existe um leque imenso de profissões, há alunos que vão prestar outros cursos. A cada dia que passa surgem novas profissões.
CIDADÃO: O ministro Fernando Haddad, recentemente, disse a seguinte frase: “O modelo atual dos vestibulares privilegia a memorização, em detrimento da capacidade de raciocínio do aluno”. Você concorda com isso?
ISABEL: No que se refere ao meu trabalho, sim. Como disse há pouco, a escola é “conteudista”, e busca a memorização, inclusive com a utilização de várias estratégias na sala de aula. Hoje, quando voltamos a trabalhar a Filosofia e a Sociologia, além da Antropologia, percebemos que os alunos veem essas cadeiras como um remédio amargo, que eles tomam por obrigação porque vão usar isso no vestibular. Por outro lado, surgiram outras posturas de estudantes, que nunca haviam despertado para as ciências humanas, que também exigem raciocínio. Numa sala de aula de 40 alunos, 90% ainda acreditam que História é uma matéria para ser decorada; que Filosofia não serve pra nada; e que Sociologia só estuda Reforma Agrária...Existem preconceitos, ideias formadas anteriormente, que dificultam trabalhar essa situação. Acho que a mudança seria para quebrar certos paradigmas que atrapalham o desenvolvimento das pessoas.

CIDADÃO: E quanto à unificação proposta do vestibular? Será que a realidade de Rondônia é a mesma do Rio Grande do Sul? Ou estaria havendo um incentivo à migração interna do aluno, com essa história de 227 mil vagas em 55 universidades federais, e com a possibilidade do estudante colocar cinco opções em qualquer universidade do país?
ISABEL: No que se refere a esse assunto da mudança, não acho bom, porque quando houve a Independência do Brasil – um movimento de interesse do próprio colonizador – houve também a unidade política e territorial. Dom Pedro I fez a Independência por vários motivos, mas “não deu conta” da unidade cultural do Brasil, que não existe. O Brasil é um país plural na sua cultura, nas suas etnias, na religião, e que abriga gente do mundo inteiro. Não há país mais plural no mundo. O que chamam de falta de identidade do Brasil é justamente a sua identidade, essa geléia geral que se constrói a cada dia. Nesse sentido, não acredito no sucesso da mudança, pelo fato de que as realidades são diferentes e muitas vezes as universidades têm um enfoque para a aplicação da prova, para a cobrança dos conteúdos e para a correção da prova. A maneira como se corrige uma prova de redação em Alfenas não é igual a que se faz na Famerp de São José do Rio Preto. O aluno que estuda em Santa Catarina encontra uma realidade cultural; o que estuda em Belém do Pará encontra outra. Quando uma pessoa chega a um lugar, ela se adapta e cria condições para viver ali, mas também sente as condições. Seu organismo não está adaptado às doenças da região. Quando a gente viaja para determinados lugares do país, temos que tomar uma série de vacinas, não é? Realmente, o estudante poderá colocar cinco opções de universidades em qualquer lugar do Brasil. O aluno poderá sofrer até um deslumbramento, ou a fantasia do tipo tomar como parâmetro de análise a relação candidato/vaga. É a estatística mais “furada” que uma pessoa pode usar para prestar um vestibular.

CIDADÃO: Confesso que não entendo essa atitude de apoio e sustentação à mobilidade dos estudantes dentro do território nacional, inclusive com respaldo do Plano Nacional de Assistência Estudantil, até porque isso vai contra os preceitos do grande pedagogo Paulo Freire, que pregava a fixação do homem à terra de origem. E do ponto de vista didático-pedagógico, isso é correto?
ISABEL: Você tem razão, mesmo porque nós não conhecemos a história desses lugares. Aconteceram fatos no Acre, com relação à criação daquele Estado, que não conhecemos por aqui. Quando estudamos a história do Brasil, a gente a vê com olhos diferentes, sob o ponto de vista de cada região. Se uma pessoa chega a uma outra região, ele é um “estrangeiro” ali. Sabemos que há objetivos políticos nessa migração. A gente se preocupa muito com o que vai acontecer, se é que vai mesmo acontecer, já que o Rio Grande do Sul, por exemplo, deixou claro que não vai aderir. A própria Unicamp pode não usar a nota do Enem no vestibular de 2010. A Unesp de São José do Rio Preto já prepara a sua prova do vestibular do final deste ano com a inclusão de Filosofia, Sociologia, Antropologia, Educação Física e Informática. Só que ninguém conhece ainda esse programa. Estamos trabalhando essas disciplinas e aguardando um pronunciamento da Unesp para saber que programa ela pedirá, para que a gente possa trabalhar. A escola corre para mudar isso num curto prazo. Filosofia, por exemplo, é uma matéria que tem que ser trabalhada de forma profunda, ética e honesta, porque é, por natureza, provocativa, e não podemos ser tendenciosos, nem ideológicos demais, quando trabalhamos com disciplinas das ciências humanas. Gosto das mudanças porque elas mexem com as pessoas; porém, se não há uma consciência cultural, a mudança não é bem-vinda. Quando ela acontece, e o governo usa os meios de comunicação para falar dela, nem todos conseguem entender qual é a proposta. Primeiro, o governo decidiu fazer a mudança; logo em seguida, o ministro da Educação veio a público dizer que há quatro possibilidades diferentes na forma de adesão das instituições. Nessa situação, o vestibulando terá que saber primeiro tudo o que a universidade está pedindo, e se ele está preparado para entrar lá. Sabemos que os nossos estudantes têm capacidade para ingressar em qualquer escola superior. O que diferencia um aluno do outro é a forma como cada um se preparou para enfrentar a prova. É preocupante a forma como o governo está olhando para essa diversidade cultural, ou seja, de cima para baixo. Ela pode nos puxar de novo para o conceito da globalização, e se esse conceito não for bem trabalhado, poderá ser malvisto, porque descaracterizaria a cultura das pessoas. Acredito que a Internet ajuda muito nisso. Essa reforma tem uma proposta de se usar a nota do Enem para preencher vagas nas universidades. Isso pode causar uma correria dos alunos para cursos que ele nem tinham pensado em fazer. A minha preocupação é o que acontecerá quando essa pessoa sair da faculdade e tentar ingressar no mercado de trabalho: que tipo de profissional ele será, e que tipo de mercado haverá para acolhê-lo. Fala-se muito em inclusão social; mas que inclusão é essa, se o menino pobre vai entrar, mas não vai sair?!