Amargo passado

20 de Agosto de 2025

Compartilhe -

Amargo passado
Aquele dia amanhecera mais bonito. Depois de tanta espera, enfim chegara o dia do seu casamento. Ana estava muito ansiosa. Apesar de não gostar de vestidos de noiva, não via a hora de entrar naquele, ir para o altar e deixar ali mesmo todo seu passado.

Ela de fato amava João Pedro, mas a urgência em casar era para pôr fim às torturas e tentativas de abusos por parte do seu próprio pai. Depois que sua mãe fora embora deixando quatro filhos pequenos – por não agüentar viver ao lado de um homem cruel e ciumento – passou a ser vítima do próprio pai.

Sua válvula de escape era a avó materna, mas tinha vergonha de lhe contar que seu pai, vez ou outra, aparecia em meu quarto para tentar lhe molestar. Às vezes, Ana acordava à noite e via o pai ao lado de sua cama, despido e se insinuando para ela.

Quando Ana decidiu-se casar com João Pedro, foi mesmo para fugir das garras do pai. Só não esperava que antes de subir ao altar recebesse a notícia de que o homem com quem iria se casar estava aos beijos com outra, no dia do casamento. Embora a tristeza tomasse conta do seu coração, não tinha como voltar atrás.

Eles casaram-se e, algum tempo depois, tiveram um filho: Pedrinho. Um dos melhores presentes que Deus podia ter dado. Segundo a mãe, era a criança mais linda. Seus cabelinhos eram loiros e sua pele era bem clara, feito anjo.

Com a chegada do neném, também vieram as dificuldade e responsabilidades. A casa em que eles moravam era muito pobre, a porta mal fechava. Se alguém encostasse o dedo, ela se abria. Não tinham fartura, o dinheiro era bastante regrado.

“À noite, quando o bebê chorava de cólica, ficávamos como loucos por não ter remédio para dar. Aliás, não tínhamos nem fraldas para cobri-lo. Certa vez consegui algumas, depois de uma grande chuva que fez cair uma faixa que anunciava um evento na cidade onde morávamos, Votuporanga. Quando amanheceu, vi aquela faixa caída e logo pensei em pegá-la para fazer várias fraldinhas para o neném. Por um bom tempo não precisei pensar em novas”, disse Ana.

Quando Pedrinho começou a andar e falar, todos ficavam encantados com ele por ser uma criança falante. Parecia um adulto. Às vezes ficava em pé no portão vigiando a rua. Quando passava alguém ele logo dava um jeito de puxar uma conversa para chamar a atenção. Os que paravam ficavam encantados com sua inteligência e doçura. Era o orgulho da família.

João Pedro, embora fosse muito mulherengo, era um excelente pai e dono de casa. Gostava de fazer os serviços de casa, fazia de tudo; porém, sempre advertia: “Ana, avise quando chegar alguém para eu tirar o avental. Faço todos os serviços, mas não quero que ninguém saiba”.

João Pedro amava o filho e cuidava dele melhor que Ana. Até que um dia ela teve que aprender a cuidar do seu bebê sozinha. “Meu marido começou a passar mal, foi internado e saiu do hospital sem vida. Embora os médicos tenham inventado um nome complicado para justificar sua morte, tenho certeza de que foi erro médico. Ele precisou fazer uma transfusão de sangue e erraram o tipo sanguíneo do João. Naquela época não havia os aparelhos modernos que existem hoje. Não teve como voltar atrás”, lamentou Ana.

Sem o marido, a vida de Ana ficara muito mais difícil, pois eles moravam e trabalhavam em um clube que só aceitavam casais para o trabalho. Com a morte de João Pedro, automaticamente ela ficara desempregada e com dívida, pois ele havia comprado uma televisão e parcelado em 24 meses. Só a primeira estava paga.

O mundo parecia querer desabar de uma vez só. Ana estava desempregada, endividada, com um filho e uma irmã para sustentar. (Sua irmã caçula veio morar com ela por não suportar as torturas do pai e da avó que a maltratava).

Como se não bastassem todos estes problemas, a sogra decidiu tomar seu filho. Duras batalhas foram travadas pela criança; mas por força do destino, ninguém – exceto Deus – ficou com o pequeno Pedrinho, pois cinco meses após a morte do pai, ele morreu de meningite.

“Lembro-me como se fosse hoje. Um dia antes de sua partida, fomos eu e uma amiga - que morava comigo em uma pensão - dar uma volta de carro, como de praxe, para fazer o Pedrinho dormir. Quando íamos entrar no carro, surgiu um cachorrinho de cor preta que, abanando o rabo, fez a maior festa aos pés do neném. Ele ficou encantado com o cachorrinho, então decidimos ficar com ele. Trancamos o cachorro no banheiro e saímos. Quando voltamos e abrimos a porta do banheiro, misteriosamente, o cachorro havia desaparecido. Não havia vestígios do cão. Até hoje não sei como é que ele pôde fugir, pois o banheiro era coberto por laje e a porta havia sido trancada pelo lado de fora. O fato é que no dia seguinte, meu neném morreu. E com ele, parte de mim”.

Ana passou dias amargos sem a presença do filho e do marido e, por vezes, desejou a morte, apenas para ficar mais perto dos seus. Mas a responsabilidade e necessidade de cuidar da irmã, a fez lutar para sobreviver.

Depois de alguns anos, Ana casou-se novamente e Deus, então, preencheu o vazio do seu coração com dois grandes presentes: suas filhas. Que segundo ela, é a razão do seu viver. Tudo o que ela não pode fazer por Pedrinho, se esforça para fazer pelas “meninas”. Seu maior orgulho é ver as filhas formadas, cada uma com duas formaturas.

Mas até hoje – passados mais de 30 anos – Ana não se esquece de Pedrinho. Mas se tocam no assunto ela logo diz: “não gosto nem de lembrar dessa história”. Um de seus maiores sonhos é ter um neto. Quem sabe um menino - com feição de anjo, como Pedrinho - para matar a saudade daquele tempo que não volta mais.

(Os nomes dos personagens dessa história real foram alterados para preservar a identidade dos mesmos)