Dos pequenos milagres

20 de Agosto de 2025

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Dos pequenos milagres
 Dona Nilma atualmente ajuda a filha em seu novo empreendimento: uma loja de roupas e acessórios

Dona Nilma Cotrin tem 89 anos e uma história que não caberia em tão poucas linhas. Professora aposentada, já exer­ceu o trabalho de advogada e dona de pensão. Quando ainda muito jovem, prestou concurso para professora do Estado e passou alguns anos lecionando em Fernandópo­lis, entre as escolas Joaquim Antonio Pereira e Coronel Francisco Arnaldo da Silva. Logo o delegado regional de ensino a transferiu para São Carlos, onde trabalhou por mais longos anos, se casou e constitui família.

Foi lá que boa parte de sua história se deu, contando com pequenos milagres diários. Casada com o Arnaldo Gomes (em memória), um grande em­preendedor do jogo do bicho – numa época em que o jogo era legal -, mantinha uma vida tranquila e estruturada para criar seus cinco filhos: Marcia Maria, Arnaldo Tadeu, Mar­ta Flora, Mara Lúcia e Maria Mônica.

Quando a lei de contraven­ções penais, decreto-lei 3.688, de 3 de outubro de 1941, consi­derou efetivamente a proibição dos jogos de azar no Brasil, prevendo prisão, multa e fe­chamento do estabelecimento quando descoberta a prática do jogo do bicho, sr. Arnaldo se viu fechando o seu negócio e inde­nizando todos os funcionários.

“Quando meu marido che­gou em casa, era um homem caído. Eu disse a ele para não se preocupar, pois ainda tínha­mos um dinheiro guardado e ele logo negou, dizendo que usou todo o dinheiro para inde­nizar os funcionários. Ele era um homem muito justo, não deixaria os funcionários sem o pagamento. Ele, arrasado, disse que não sabia fazer mais nada na vida além daquilo. Foi uma profissão que aprendeu desde mocinho com o meu sogro. Meu marido se entregou. Falei para ele não ficar nervoso com isso, que daríamos um jeito. Ele já tinha idade, era 14 anos mais velho do que eu”, conta dona Nilma.

A casa em que moravam era de seu sogro, que também resi­dia junto. Pedindo autorização ao marido, foi negociar com ele. “Eu pedi ao meu sogro per­missão para que pudéssemos alugar aquela casa e, com o dinheiro, alugar outra maior para que eu pudesse abrir uma pensão. Ele permitiu, mas com uma condição: que ele con­tinuasse tendo trânsito livre naquela casa, porque foi ele quem a construiu e morava ali há muitos anos. Ele me disse: “quero continuar morando com você, mas quero entrar e sair desta casa a hora que eu quiser”. E eu fiquei me per­guntando... como?”.

A resposta veio breve. “Con­versando com o meu cunhado, que era presidente de um clube de carteado, descobri que pre­cisavam de uma nova sede para o clube. Então, tínhamos tudo o que precisávamos: a sede para o clube e o livre acesso de meu sogro que até pode con­tinuar com a chave da casa”, explica.

Em seguida, dona Nilma foi conversar com uma amiga que tinha uma casa grande e cheia de quartos, dizendo que preci­sava de uma casa como aquela. Explicando toda a situação, a amiga não faltou e alugou a casa para o novo empreendi­mento.

Dentro de poucos dias, dona Nilma cuidava de sua família e cozinhava para cerca de 50 pessoas todos os dias. “Eu co­zinhava para famílias inteiras, café da manhã, almoço e jan­tar”, conta.

Ainda no começo do novo negócio, quando ainda não ti­nha entrado dinheiro no caixa, dona Nilma viu um pequeno milagre acontecer. Sem arroz para preparar o almoço, ten­tou comprar ‘fiado’ no arma­zém da esquina, todavia, sem sucesso. “Os armazéns não vendiam fiado para os donos de pensão, pois eram maus pagadores e eu só estava que­rendo começar o meu negócio. Eu coloquei meus joelhos no chão e comecei a rezar. Foi quando um milagre aconte­ceu”, ressalta. De surpresa, alguns primos que moravam em sua cidade natal, Olímpia/ SP, chegaram à pensão e paga­ram adiantado, possibilitando a compra do arroz e salvando o almoço de todos.

E foi assim que manteve a pensão por muitos anos, pro­vendo o sustento de sua famí­lia e correndo atrás de estudar cada vez mais. Dona Nilma se formou em Direito, advogou por três anos. Logo o Estado a convocou para ficar a disposi­ção da delegacia de ensino e le­cionar passou a ser mais viável. Deu aulas por mais de 20 anos em São Carlos.

Quando seu marido faleceu, seus filhos acharam melhor que ela fosse morar com a filha mais velha. “Mas quando a gente é velha, é difícil se acos­tumar na casa de filho. Eu que­ria o meu cantinho”, conta. Assim, uma das filhas alugou uma casa em Fernandópolis, próxima de toda a família. “Só falta um filho vir morar aqui”, diz dona Nilma feliz em ver quase toda a família reunida novamente.  

Hoje, com uma vida intei­ra para contar e uma lucidez invejável, diz que o trabalho é a melhor benção na vida das pessoas. E que está feliz em ver os jovens acordando e indo às ruas manifestar o descon­tentamento diante de “tanta roubalheira nesse país”.